Teorias Francesa e Alemã na Conformação do Negócio Jurídico no Direito Brasileiro

1. Introdução
O conceito de negócio jurídico é fundamental para a compreensão do direito civil, especialmente no que tange à criação, modificação, transferência e extinção de direitos e obrigações. Este breve estudo visa analisar as influências das teorias francesa e alemã no desenvolvimento do conceito de negócio jurídico no Brasil, explorando como essas doutrinas foram adaptadas e implementadas no Código Civil de 2002.
A evolução histórica das teorias francesa e alemã do negócio jurídico demonstra um desenvolvimento paralelo, mas distinto. A teoria francesa, com raízes no Código Napoleônico de 1804, privilegiou uma abordagem prática e direta. A teoria alemã, desenvolvida a partir do século XIX com a consolidação do BGB em 1900, adotou uma metodologia mais sistemática e analítica, influenciada pelo direito romano.
2. A Teoria Francesa do Negócio Jurídico
A teoria francesa do negócio jurídico, menos formalizada que a alemã, distingue entre "acte juridique" (ato jurídico) e "fait juridique" (fato jurídico). Segundo Marcel Planiol, um dos principais juristas franceses, o ato jurídico é "toda manifestação de vontade destinada a produzir efeitos jurídicos" (PLANIOL, Marcel. Traité élémentaire de droit civil. Paris: Librairie générale de droit et de jurisprudence, 1952).] A doutrina francesa foca-se mais nos contratos e obrigações, sem uma estrutura teórica detalhada para o negócio jurídico em geral. A estrutura francesa pode ser observada no Código Civil Francês, artigos 1100-1 a 1100-2.
3. A Teoria Alemã do Negócio Jurídico
A teoria alemã oferece uma estrutura complexa e detalhada. Pioneiros como Friedrich Carl von Savigny e Bernhard Windscheid desenvolveram a noção de "Rechtsgeschäft" (negócio jurídico), que abrange a declaração de vontade (Willenserklärung) e os requisitos para sua validade. Savigny define o negócio jurídico como "a manifestação da vontade com a finalidade de produzir efeitos jurídicos" (SAVIGNY, Friedrich Carl von. System des heutigen Römischen Rechts. Berlin: Veit & Comp., 1840). A minuciosidade da teoria alemã está presente no Bürgerliches Gesetzbuch (BGB), especialmente nos §§ 104 a 185.
4. A Recepção no Direito Brasileiro
O Código Civil Brasileiro de 2002 incorpora elementos de ambas as teorias, com uma clara predominância da abordagem alemã. O artigo 104 do Código Civil estabelece os requisitos de validade do negócio jurídico: agente capaz, objeto lícito, possível, determinado ou determinável, e forma prescrita ou não defesa em lei. Esta formulação espelha a estrutura detalhada encontrada na teoria alemã, que exige uma análise rigorosa dos elementos constitutivos do negócio jurídico (GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2014).
5. Análise Crítica e Comparativa
5.1 Estrutura e Análise do Negócio Jurídico:
Teoria Alemã:
Envolve uma análise detalhada e sistemática do negócio jurídico, dividida em elementos subjetivos (capacidade e intenção das partes), objetivos (objeto lícito e possível), e formais (forma prescrita ou não defesa em lei).
Os requisitos de validade são rigorosamente estruturados, contemplando uma abordagem analítica que distingue claramente entre a manifestação de vontade (Willenserklärung) e o negócio jurídico em si (Rechtsgeschäft).
Teoria Francesa:
Adota uma abordagem mais simplificada e pragmática. O foco está na manifestação de vontade e nos efeitos jurídicos pretendidos, sem uma divisão tão rígida e detalhada dos elementos constitutivos.
A análise dos negócios jurídicos é mais direta, focando-se nos contratos e nas obrigações, sem a necessidade de uma estrutura teórica complexa.
5.2 Formação e Validade do Negócio Jurídico:
Teoria Alemã:
A formação do negócio jurídico é condicionada à observância de diversos requisitos formais e substanciais. A ausência de qualquer um desses elementos pode levar à nulidade do negócio.
Há uma grande ênfase na capacidade das partes, na ausência de vícios de consentimento (erro, dolo, coação, etc.), e na conformidade do objeto com a lei e a moral.
Teoria Francesa:
A formação do negócio jurídico é mais flexível, com maior ênfase na intenção das partes e nos efeitos práticos do negócio.
Embora também considere a capacidade e a licitude do objeto, a abordagem francesa é menos rígida quanto aos requisitos formais, focando-se mais na intenção das partes e na realidade prática do contrato.
5.3 Interpretação dos Negócios Jurídicos:
Teoria Alemã:
A interpretação é realizada com base em princípios hermenêuticos rigorosos, buscando entender a intenção interna das partes (Willenstheorie) e os aspectos objetivos do negócio.
A jurisprudência alemã tende a ser mais técnica, focando-se na precisão e na consistência lógica dos argumentos.
Teoria Francesa:
A interpretação é mais voltada para os efeitos práticos e a vontade manifesta das partes (Erklärungstheorie), com maior flexibilidade para considerar as circunstâncias do caso concreto.
A abordagem francesa é mais pragmática, considerando o contexto e a finalidade do negócio jurídico para determinar a intenção das partes.
5.4 Abordagem na Resolução de Conflitos:
Teoria Alemã:
Os conflitos são resolvidos com base em uma análise detalhada dos elementos do negócio jurídico, utilizando princípios de direito romano -germânico.
A resolução tende a ser mais formalista, seguindo uma lógica estrita e uma estrutura jurídica bem definida.
Teoria Francesa:
Os conflitos são abordados de maneira mais pragmática, considerando a intenção e a boa-fé das partes, além dos efeitos econômicos e sociais do negócio.
A resolução é mais flexível e adaptável, buscando soluções que atendam às necessidades práticas e à equidade.
5.5 Influência na Legislação:
Enquanto a teoria francesa influencia principalmente a noção de contratos e obrigações, a teoria alemã fornece uma base mais sólida para a compreensão do negócio jurídico como um todo. A predominância da teoria alemã no direito brasileiro é evidente na forma como os requisitos de validade são abordados no Código Civil. No entanto, elementos da simplicidade e pragmatismo da teoria francesa também se fazem presentes, especialmente na interpretação e aplicação prática do direito contratual (VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Parte Geral. São Paulo: Atlas, 2012).
6. Aplicabilidade Prática no Brasil
No contexto brasileiro, a aplicabilidade prática das teorias francesa e alemã se manifesta na jurisprudência e na doutrina. A complexidade do negócio jurídico alemão é frequentemente utilizada em questões que envolvem a validade e a interpretação de contratos complexos, enquanto a simplicidade da teoria francesa é mais aplicável em situações cotidianas e menos complexas. A interação dessas influências resulta em uma aplicação prática flexível e adaptável às diversas situações jurídicas (GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2019).
Para ilustrar tal raciocínio, vejamos algumas ementas de julgados pátrios:
REsp 1.725.244/SP - Ementa: "Contrato de seguro. Teoria da base do negócio jurídico. Aplicabilidade no ordenamento brasileiro. Influência do Código Civil Alemão (BGB). O Código Civil de 2002, ao adotar a teoria da base objetiva do negócio jurídico, evidencia a clara influência do BGB, permitindo a revisão de contratos em casos de alteração substancial das circunstâncias." Fonte: Superior Tribunal de Justiça (STJ) (STJ Jurídico).
REsp 1.763.515/PR - Ementa: "Erro substancial. Vício do consentimento. Teoria alemã dos negócios jurídicos. A redação do artigo 138 do Código Civil Brasileiro de 2002 reflete a influência da teoria alemã ao disciplinar o erro substancial como vício do consentimento, exigindo a essencialidade do erro para a anulação do negócio jurídico." Fonte: Superior Tribunal de Justiça (STJ) (STJ).
REsp 1.696.681/SP - Ementa: "Princípio da boa-fé objetiva. Influência do direito alemão no Código Civil de 2002. A adoção do princípio da boa-fé objetiva pelo Código Civil de 2002 demonstra a inspiração no Código Civil Alemão, impondo deveres de lealdade e cooperação entre as partes contratantes." Fonte: Superior Tribunal de Justiça (STJ) (STJ Jurídico).
REsp 1.754.983/RS - Ementa: "Teoria da imprevisão. Revisão contratual. Código Civil de 2002. Influência da teoria alemã. O artigo 478 do Código Civil Brasileiro de 2002, que trata da resolução por onerosidade excessiva, mostra a clara adoção da teoria da imprevisão oriunda do direito alemão, permitindo a revisão judicial de contratos quando ocorrerem alterações imprevisíveis e extraordinárias." Fonte: Superior Tribunal de Justiça (STJ) (STJ).
7. Conclusão
A influência da teorias francesa e, predominantemente, da alemã no direito civil brasileiro resulta em um sistema híbrido que combina a complexidade teórica alemã com a pragmática aplicação francesa. Esta combinação oferece ao direito brasileiro uma flexibilidade única, permitindo uma abordagem abrangente e detalhada dos negócios jurídicos. A análise das disposições do Código Civil de 2002 demonstra uma clara predominância da teoria alemã, adaptada às necessidades e particularidades do contexto jurídico brasileiro.
Referências Bibliográficas
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2014.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2019.
PLANIOL, Marcel. Traité élémentaire de droit civil. Paris: Librairie générale de droit et de jurisprudence, 1952.
SAVIGNY, Friedrich Carl von. System des heutigen Römischen Rechts. Berlin: Veit & Comp., 1840.
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Parte Geral. São Paulo: Atlas, 2012.