Processo Estrutural: algumas considerações importantes

Introdução
O processo estrutural tem se destacado como uma ferramenta essencial no âmbito do processo coletivo, especialmente em situações onde problemas complexos e sistêmicos demandam soluções que transcendem o tradicional modelo binário de litígios. Este artigo tem como objetivo discutir as nuances do processo estrutural, diferenciando entre problema estrutural, processo estrutural e decisão estrutural. Além disso, abordaremos a origem histórica do processo estrutural, com destaque para o caso emblemático "Brown v. Board of Education".
Problema Estrutural
Um problema estrutural, também chamado de litígio estrutural, refere-se a questões sistêmicas que afetam uma grande parcela da sociedade ou uma instituição em sua totalidade. Tais problemas geralmente estão enraizados em práticas, políticas ou condições de longo prazo que perpetuam desigualdades ou disfunções. Exemplos comuns incluem discriminação racial, desigualdade educacional e condições precárias em sistemas prisionais. Problemas estruturais são, portanto, mais complexos e difusos do que violações isoladas de direitos individuais, exigindo abordagens multifacetadas para sua resolução (Andrade, 2018).
Processo Estrutural
O processo estrutural, por sua vez, é o mecanismo judicial utilizado para tratar de problemas estruturais. Ao contrário dos processos tradicionais que geralmente focam em disputas entre partes individuais, o processo estrutural envolve uma abordagem mais abrangente e contínua. Esse tipo de processo requer a participação de múltiplos atores, incluindo governos, instituições e representantes da sociedade civil, e busca implementar mudanças sistêmicas através de ordens judiciais que supervisionam e dirigem a reforma necessária (Fiss, 1979).
Decisão Estrutural
A decisão estrutural é o produto final do processo estrutural e visa remediar os problemas sistêmicos identificados. Essa decisão não se limita a determinar culpabilidade ou responsabilidade, mas inclui ordens detalhadas que estipulam ações específicas para corrigir as disfunções sistêmicas. Isso pode incluir a reestruturação de instituições, a implementação de novas políticas ou a supervisão judicial contínua para garantir o cumprimento das reformas (Resnik, 1982).
A decisão estrutural tem uma natureza de Princípio, uma vez que estabelece o "estado ideal de coisas" a ser alcançado, sem, no entanto, pormenorizar como alcançar tal estado de coisas.
Origem Histórica do Processo Estrutural
A origem do conceito de processo estrutural remonta ao famoso caso "Brown v. Board of Education" (1954) nos Estados Unidos. Nesse caso, a Suprema Corte dos EUA declarou inconstitucional a segregação racial nas escolas públicas, reconhecendo que a segregação perpetuava a desigualdade sistêmica. O tribunal não apenas emitiu uma decisão declaratória, mas também ordenou que a integração escolar ocorresse com "toda a rapidez deliberada". Este caso estabeleceu um precedente para o uso de ordens judiciais que exigem mudanças estruturais e criaram um modelo para abordagens judiciais a problemas sistêmicos (Kluger, 1976).
Características Principais do Processo Estrutural
1. Natureza Coletiva
A característica mais fundamental do processo estrutural é sua natureza coletiva. Esses processos são iniciados para abordar problemas que afetam grandes grupos de pessoas ou instituições inteiras, como sistemas educacionais, unidades de saúde, e sistemas penitenciários. Por essa razão, o processo estrutural muitas vezes envolve a participação de vários stakeholders (partes interessadas), incluindo entidades governamentais, organizações não-governamentais e grupos comunitários (Resnik, 1982).
2. Complexidade e Amplitude
Os processos estruturais são intrinsecamente complexos devido à amplitude dos problemas que visam resolver. Esses processos demandam uma análise profunda e uma abordagem multifacetada para identificar e corrigir as causas subjacentes das disfunções sistêmicas. A solução desses problemas geralmente requer a coordenação de múltiplas disciplinas e a implementação de diversas medidas corretivas simultaneamente (Fiss, 1979).
3. Intervenção Judicial Prolongada
Uma característica distintiva do processo estrutural é a intervenção judicial prolongada. Em vez de emitir uma sentença definitiva, o tribunal pode manter jurisdição contínua sobre o caso para monitorar a implementação das reformas ordenadas. Isso inclui a emissão de ordens adicionais, a realização de audiências periódicas e a avaliação do progresso realizado em conformidade com as diretrizes estabelecidas (Horowitz, 1977).
4. Flexibilidade das Decisões Judiciais
As decisões em processos estruturais são notavelmente flexíveis e adaptáveis. O tribunal pode ajustar suas ordens com base em novas informações ou mudanças nas circunstâncias, garantindo que as medidas corretivas permaneçam eficazes e relevantes ao longo do tempo. Essa flexibilidade permite que o tribunal responda dinamicamente às necessidades emergentes e desafios imprevistos que possam surgir durante a implementação das reformas (Abram Chayes, 1976).
5. Foco em Resultados Sustentáveis
O objetivo final do processo estrutural é alcançar resultados sustentáveis que tragam mudanças duradouras às condições sistêmicas subjacentes. Para isso, as ordens judiciais frequentemente incluem a criação de mecanismos de supervisão e avaliação contínua, bem como a promoção de práticas e políticas que assegurem a manutenção das reformas após o encerramento da supervisão judicial (Kluger, 1976).
6. Envolvimento Multidisciplinar
Dada a complexidade dos problemas abordados, os processos estruturais frequentemente requerem a expertise de profissionais de diversas áreas, como sociólogos, economistas, educadores e profissionais da saúde. Esse envolvimento multidisciplinar é essencial para desenvolver e implementar soluções que sejam holísticas e eficazes a longo prazo (Andrade, 2018).
7. Decisões em Cascata
As decisões em cascata são um conjunto de medidas judiciais que são emitidas de forma progressiva, com cada decisão construindo sobre a anterior para garantir a implementação eficaz de reformas estruturais.
Fases do Processo Estrutural
Fredie Didier Jr. identifica diferentes fases no desenvolvimento do processo estrutural, cada uma desempenhando um papel crucial na identificação, análise e resolução dos problemas.
1. Fase de Diagnóstico
A fase de diagnóstico é a etapa inicial do processo estrutural, onde se busca identificar e compreender a natureza e a extensão do problema estrutural. Esta fase é crucial para fundamentar a necessidade de intervenção judicial e estabelecer as bases para as fases subsequentes.
Atividades Principais:
Levantamento de Dados: Coleta de informações detalhadas sobre o problema através de pesquisas, entrevistas, estudos de campo e análise de documentos.
Análise Situacional: Avaliação das causas e consequências do problema estrutural, identificando os fatores que contribuem para sua perpetuação.
Relatórios e Estudos: Elaboração de relatórios que consolidem os dados coletados e apresentem uma visão clara e abrangente do problema.
2. Fase de Deliberação
Nesta fase, as partes envolvidas, incluindo representantes das instituições afetadas, autoridades públicas e grupos interessados, discutem as possíveis soluções para o problema identificado. É uma fase de diálogo e negociação, onde se busca chegar a um consenso sobre as medidas a serem adotadas.
Atividades Principais:
Audiências Públicas: Realização de audiências para discutir as informações coletadas na fase de diagnóstico e ouvir as partes interessadas.
Negociação de Soluções: Debates e negociações para formular propostas de soluções viáveis e aceitáveis para todas as partes envolvidas.
Formulação de Planos de Ação: Desenvolvimento de planos de ação detalhados, incluindo as medidas a serem implementadas, prazos e recursos necessários.
3. Fase de Decisão
A fase de decisão envolve a emissão de ordens judiciais que determinam as medidas a serem implementadas para resolver o problema estrutural. Essas ordens são baseadas nas deliberações anteriores e são projetadas para promover mudanças sistêmicas.
Atividades Principais:
Emissão de Ordens Judiciais: O tribunal emite ordens específicas que detalham as ações a serem tomadas, as responsabilidades das partes envolvidas e os prazos para implementação.
Estabelecimento de Mecanismos de Supervisão: Definição de mecanismos para monitorar a implementação das ordens judiciais, como a nomeação de inspetores ou comitês de supervisão.
4. Fase de Implementação
A fase de implementação é o período em que as ordens judiciais são colocadas em prática. Esta fase é crítica para garantir que as soluções propostas sejam efetivamente realizadas e que o problema estrutural seja resolvido de maneira sustentável.
Atividades Principais:
Execução das Medidas: Implementação das ações determinadas pelas ordens judiciais, envolvendo mudanças em políticas, práticas e estruturas institucionais.
Monitoramento Contínuo: Supervisão contínua da implementação das medidas, com a realização de avaliações periódicas para garantir conformidade e eficácia.
Relatórios de Progresso: Preparação de relatórios regulares que documentam o progresso das ações implementadas e identificam quaisquer desafios ou obstáculos encontrados.
5. Fase de Avaliação e Ajuste
A fase de avaliação e ajuste envolve a revisão contínua das medidas implementadas para assegurar que os objetivos do processo estrutural estejam sendo alcançados. É uma fase de feedback e adaptação, onde as ordens judiciais podem ser ajustadas conforme necessário.
Atividades Principais:
Avaliações Periódicas: Condução de avaliações regulares para medir o impacto das medidas implementadas e identificar áreas que necessitam de ajustes.
Ajuste de Medidas: Modificação das ordens judiciais e dos planos de ação com base nos resultados das avaliações e no feedback das partes envolvidas.
Encerramento do Processo: Uma vez alcançados os objetivos e resolvido o problema estrutural, o tribunal pode encerrar sua supervisão, certificando-se de que as mudanças sejam sustentáveis a longo prazo.
Apesar dessa divisão múltipla de fases apontada por Fredie Didier, o próprio autor tem simplificado o processo estrutural em duas grandes fases, sendo a primeira aquela em que se constata o estado de desconformidade e uma segunda grande fase em que, após uma decisão dos caminhos a serem tomados, haveria o início das implementações estruturais.
Referências
- Andrade, E. R. (2018). Problemas Estruturais e o Processo Coletivo. Revista de Direito Processual, 43(2), 215-238.
- Chayes, A. (1976). The Role of the Judge in Public Law Litigation. Harvard Law Review, 89(7), 1281-1316.
- Fiss, O. (1979). The Civil Rights Injunction. Bloomington: Indiana University Press.
- Horowitz, D. L. (1977). The Courts and Social Policy. Washington, D.C.: Brookings Institution Press.
- Kluger, R. (1976). Simple Justice: The History of Brown v. Board of Education and Black America's Struggle for Equality. New York: Knopf.
- Schlanger, M. (2006). Civil Rights Injunctions Over Time: A Case Study of Jail and Prison Court Orders. New York University Law Review, 81(2), 550-630.
- Didier Jr., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Processo Coletivo. 10ª edição. Juspodivm, 2020.