Procedimento Processual Penal Ordinário: Apontamentos Relevantes Sobre a Inicial Acusatória

30/12/2024

Introito

O Clube do Papiro selecionou alguns pontos relevantes acerca do assunto que já foram cobrados em provas objetivas, discursivas e orais das diversas carreiras jurídicas do país. Vamos relembrar didaticamente os pontos propostos!


· Quais os requisitos da denúncia previstos pela doutrina que extrapolam aqueles do art 41 CPP ?

A denúncia é a peça inicial da ação penal pública, por meio da qual o Ministério Público formaliza a acusação contra o suposto autor de um delito. Para ser considerada válida, a denúncia deve atender aos requisitos estabelecidos no artigo 41 do Código de Processo Penal (CPP), que são:

Exposição do fato criminoso com todas as suas circunstâncias: a narrativa deve detalhar o comportamento delituoso, especificando elementos como tempo, lugar, modo de execução e motivação.

Qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo: é necessário fornecer informações que permitam a identificação precisa do acusado, como nome completo, filiação, endereço, entre outros.

Classificação do crime: indicação do dispositivo legal que tipifica a conduta imputada ao acusado.

Rol de testemunhas, quando necessário: a relação das pessoas que serão arroladas para depor sobre os fatos narrados.

Além desses requisitos legais, a doutrina aponta outros elementos essenciais para a validade da denúncia:

  • Redação da peça acusatória em português;
  • O Endereçamento da peça acusatória;

  • Subscrição da peça pelo membro do Ministério Público;

  • Menção das razões de convicção ou presunção da delinquência;

  • Obs: nos casos de queixa crime, a doutrina aponta ainda a subscrição da peça pelo advogado do querelante, a procuração com poderes especiais e o recolhimento das custas.

    · A ação penal é instaurada com a propositura da peça acusatória ou com seu recebimento?

    Leciona Renato Brasileiro:

    "Prevalece o entendimento de que não é a propositura da peça acusatória que instaura a ação penal, mas sim o seu recebimento pelo juiz, sendo que o processo só se inicia uma vez estabelecida a tríplice relação processual, com o chamamento do réu, mormente se considerarmos que, segundo a nova redação do art.363 do CPP, o processo terá completada a sua formação quando realizada a citação do acusado".

    LIMA, Renato Brasileiro de. Curso de Processo Penal. 13. ed. São Paulo: Jus Podivum, 2024, p. 1325.


    · O MP deve compartilhar todos os elementos probatórios com a defesa após a denúncia?

    Sim. O MP tem o dever de disponibilizar à defesa todos os elementos probatórios, sejam favoráveis ou desfavoráveis ao acusado. A ocultação de provas compromete o contraditório e a ampla defesa, podendo acarretar nulidades processuais.

    Como aduz Renato brasileiro:

    "Não se pode deferir ao órgão que acusa a escolha do material a ser disponibilizado ao acusado e a dar lastro à imputação, como se a ele pertencesse a prova. Na verdade, as fontes e o resultado da prova são de interesse comum de ambas as partes e do juiz (princípio da comunhão da prova). A prova não se forma para a satisfação dos interesses de umas das partes, sobretudo daquela que acusa".

    LIMA, Renato Brasileiro de. Curso de Processo Penal. 13. ed. São Paulo: Jus Podivum, 2024, p. 1318.

    No entanto, importante frisar que, logicamente, pode o MP escolher o que irá supedanear a acusação, desde que o material restante não utilizado também seja disponibilizado à parte contrária.


    · O juiz pode, de ofício, decidir sobre suspeição, impedimento ou incompetência antes do recebimento da denúncia?

    Sim, antes do recebimento da denúncia, o juiz deve analisar de ofício sua própria competência, bem como possíveis causas de impedimento ou suspeição, para garantir a imparcialidade e legitimidade do processo. Nesse sentido, importante lembrar que é plenamente possível o reconhecimento ex officio tanto da incompetência absoluta como da competência relativa. 

    Aqui vale um adendo a respeito da competência relativa: a súmula 33 do STJ não deve ser aplicada ao processo penal, isso porque tal súmula foi editada sob a ótica do processo civil, onde, em regra, estão em jogo direitos individuais disponíveis. Além disso, o art 109 do CPP não faz qualquer distinção quanto à espécie de incompetência que poderá ser alegada pelo juiz, não cabendo ao intérprete criar tal diferença ("ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus").

    Sem querer persistir no assunto, entende-se que o magistrado dispõe de competência para delimitar sua própria competência, premissa trazida da doutrina constitucional alemã ("Kompetenz-Kompetenz").


    · Diferença entre inépcia formal e material da denúncia?

    • Inépcia formal: ocorre quando a denúncia não atende aos requisitos previstos no art. 41 do CPP, como a descrição inadequada dos fatos ou a ausência de identificação do acusado.

    • Inépcia material: refere-se à ausência de justa causa, isto é, a falta de elementos mínimos que sustentem a acusação.

    Assim, importante lembrar que, havendo inépcia material, a rejeição da peça acusatória se dará com base no art 395, inciso III do CPP, e não com base no inciso I do mesmo artigo do diploma processual penal.


    · A inépcia da denúncia convalida-se com a sentença?

    De acordo com o entendimento dos Tribunais Superiores, eventuais vícios da denúncia ou queixa só podem ser reconhecidos até o momento da sentença. O STF já se pronunciou a respeito:

    "A arguição de inépcia da denúncia está coberta pela preclusão quando, como na espécie, aventada após a sentença penal condenatória, o que somente não ocorre quando a sentença vem a ser proferida na pendência de habeas corpus já em curso".

    RHC 98.091/PB, rel. min. Cármen Lúcia, DJe nº 67, divulgado em 15.04.2010)

    Apesar do entendimento jurisprudencial a respeito, parte da doutrina entende que aqueles vícios que incidem sobre formalidades essenciais da peça acusatória não estão sujeitos à convalidação. Imagine, por exemplo, um defeito da inicial que não permite a identificação do fato objeto da acusação. Tal defeito, segundo parcela da doutrina, não pode ser convalidado pela sentença, uma vez que não delimita a matéria submetida a julgamento, inviabilizando o contraditório e a ampla defesa.


    · É possível a rejeição parcial da denúncia?

    Sim. O juiz pode rejeitar apenas parte da denúncia que seja inepta ou careça de justa causa, prosseguindo a ação penal em relação às acusações válidas.


    · O acusado deve ser intimado para contrarrazões em caso de RESE do MP?

    Sim, o acusado deve ser intimado para apresentar contrarrazões ao RESE interposto pelo MP. A ausência dessa intimação configura cerceamento de defesa, e a nomeação de defensor dativo não supre essa irregularidade.

    Nesse sentido, a súmula n° 707 do STF:

    "Constitui nulidade a falta de intimação do denunciado para oferecer contra-razões ao recurso interposto da rejeição da denúncia, não a suprindo a nomeação de defensor dativo".


    · O provimento do RESE pelo Tribunal interrompe a prescrição?

    Em regra,a decisão que dá provimento ao recurso em sentido estrito interposto contra a rejeição da peça acusatória passa a ser o marco interruptivo da prescrição, pois equipara-se ao recebimento da denúncia ou queixa para fins prescricionais.


    · O juiz pode rejeitar a denúncia após tê-la recebido?

    Não. O recebimento da denúncia gera preclusão pro judicato, impedindo sua posterior rejeição. No entanto, o magistrado pode reconhecer questões supervenientes, como a ausência de condições para a ação penal.

    Válido relembrar que a sexta turma do STJ possui um precedente importante sobre a possibilidade de rejeição da denúncia após o recebimento:

    "O fato de a denúncia já ter sido recebida não impede o Juízo de primeiro grau de, logo após o oferecimento da resposta do acusado, prevista nos arts. 396 e 396-A do Código de Processo Penal, reconsiderar a anterior decisão e rejeitar a peça acusatória, ao constatar a presença de uma das hipóteses elencadas nos incisos do art. 395 do Código de Processo Penal, suscitada pela defesa.

    As matérias numeradas no art. 395 do Código de Processo Penal dizem respeito a condições da ação e pressupostos processuais, cuja aferição não está sujeita à preclusão (art. 267, § 3º, do CPC, c/c o art. 3º do CPP)".

    REsp 1318180 / DF-2013, Relator MIn.SEBASTIÃO REIS JÚNIOR

    · O recebimento da denúncia por órgão incompetente interrompe a prescrição?

    Não. A interrupção da prescrição exige o recebimento da denúncia por juiz competente, conforme o artigo 117 do CP.


    · Apesar de não existir recurso contra decisão que receba a denúncia, é cabível Habeas Corpus para o trancamento da ação penal? Em quais casos?

    Em regra não há recurso contra a decisão de recebimento da peça acusatória. Porém, a jurisprudência tem admitido a impetração de Habeas Corpus, quando houver risco à liberdade, objetivando o trancamento do processo penal.

    Como o trancamento do processo penal é medida de natureza extraordinária, os tribunais têm entendido que tal ferramenta somente será possível nos seguintes casos:

    1. Manifesta atipicidade formal ou material da conduta delituosa;
    2. Presença de causa extintiva da punibilidade;
    3. Ausência de pressupostos processuais ou de condições da ação;
    4. Ausência de justa causa.

    Importante lembrarmos que há também a possibilidade de trancamento do processo penal por meio de MS (mandado de segurança). Portanto, caso o juiz não acolha os argumentos elencados na resposta à acusação e não absolva sumariamente, prosseguindo com o processo para a devida instrução, à defesa restará o manejo do HC, quando houver risco à liberdade, ou MS nas demais hipóteses, desde que presentes as hipóteses elencadas acima.

    Por fim, interessante a observação de Renato Brasileiro ao afirmar em seu manual de processo penal que a expressão "trancamento da ação penal" é equivocada. Segundo o jurista, não se pode falar em trancamento de um direito (a ação) que já foi exercido. Por tal motivo, Brasileiro recomenda,  apesar do uso corrente no dia a dia forense, a expressão "trancamento do processo penal",em nome da boa técnica jurídica.


    Referências

    LIMA, Renato Brasileiro de. Curso de Processo Penal. 13. ed. São Paulo: Jus Podivum, 2024,