O Poder Constituinte Originário é verdadeiramente ilimitado?   

28/03/2024

Talvez não seja tão simples remontar, ou ao menos apontar cronologicamente, a ideia precursora dos processos de criação do Estado e sua respectiva  noção de Poder Político. Retroagindo amplamente no tempo, alguns autores cogitam Deus como o primeiro instituidor  não só de regras morais,  mas também de tempo e espaço submergidos numa perspectiva político-social de regras e princípios a serem seguidos por uma descendência.

Se assim seguirmos o percurso, podemos mencionar a figura do monarca absolutista, mais à frente na linha temporal, como o possuidor da vontade divina traduzida em suas ordens e caprichos, revestidas do poder de criar, recriar e dissolver regras, postulados ou princípios.


Mas quando o Poder de Constituir um Estado e suas regras passaram para as mãos do povo?

O conceito de "Origem do Estado" foi defendido por diversos pensadores, porém Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau destacam-se nesse debate. Suas ideias se baseiam na perspectiva de que a formação de um Estado teve origem no consentimento do povo por meio de um "Contrato Social", visando garantir segurança e direitos individuais.

Seja pela necessidade de se evitar a guerra de todos contra todos, por ser o homem o lobo do próprio homem, ou pela imprescindibilidade de se abrir mão de parte da liberdade individual para a criação de uma sociedade política, ou pelo anseio de ter suas garantias naturais preservadas pela coletividade através da força impositiva de um ente maior, o Estado se forma a partir do exercício de um Poder que o Constitui, sendo o Povo a parte legitimada para as escolhas fundamentais na origem.

Na verdade, o exercício do poder constituinte pelo povo ocorreu, muitas vezes, através de processos revolucionários, como a Revolução Francesa de 1789, onde o povo assumiu um papel fundamental na formulação de novas constituições e na reorganização do Estado. Nesse sentido, não se pode apontar, precisamente, onde e quando o Poder Constituinte de fato passou para as mãos do povo, sendo os marcos revolucionários apenas parâmetros aceitáveis nessa análise.


Esse "Poder de Constituir" é verdadeiramente ilimitado?

Veja, uma análise pura e fria da essência de um Poder Originário, portanto inicial, pode nos levar a interpretações confortáveis, porém rasas. Isso porque a existência de limites propriamente ditos ao Poder Inicial de Constituição de um Estado subordina-se à concepção do pensamento jurídico-filosófico adotada.

Para resumir, evitando-se uma digressão desnecessária, a natureza jurídica do Poder Constituinte Originário é controvertida. Sob as lentes de uma  concepção jusnaturalista, trata-se de um poder jurídico (ou de direito) e, por esta razão, subordinado aos princípios do direito natural. Noutro giro, a concepção positivista não admite a existência de qualquer outro direito além daquele posto pelo Estado. Assim, o Poder Constituinte Originário é anterior e se encontra acima de toda e qualquer norma jurídica, devendo ser considerado um poder político/histórico (extraordinário ou de fato).


Qual a diferença, resumidamente, entre Jusnaturalismo, Positivismo e Pós-positivismo?

Sem qualquer pretensão de esgotamento do tema, pode-se dizer que as diferenças básicas entre tais concepções de pensamento circundam a origem da norma, a fonte da autoridade e os limites do poder estatal. Assim, pode-se esquematizar para fins didáticos:

     JUSNATURALISMO                          POSITIVISMO                            PÓS-POSITIVISMO


Importante frisar que existem diversas vertentes jusnaturalistas, positivistas e pós-positivistas. Parafraseando o Dr. Bruno Torrano:  "há positivismos e positivismos". Válido também mencionar que essas  abordagens filosóficas  podem coexistir e se manifestar de maneiras diferentes em sistemas jurídicos diversos.

As concepções jurídicas de inspiração jusnaturalista e pós-positivista  impõem certas limitações ao Poder Constituinte Originário, seja através dos imperativos do direito natural (vida, liberdade etc.), ou até mesmo em respeito à  consciência jurídica coletiva e aos valores éticos.

O que se entende por consciência jurídica coletiva no contexto das limitações do Poder Constituinte?

Partindo-se da ideia de que os direitos não são dados pelo Estado, mas conquistados, a consciência coletiva como limite do Poder Inicial se traduz na observância e no respeito aos direitos conquistados por uma sociedade, sobre os quais haja um consenso profundo. Perceba que tal noção limitadora do Estado adquire contornos com o princípio da vedação ao retrocesso (efeito cliquet).

Como os valores éticos se inserem como ferramenta de refreio do Poder Constituinte Originário?

De maneira objetiva, as percepções do que é justo ou injusto podem influenciar na aplicação do direito posto pelo Constituinte Originário. Aliás, a chamada Fórmula de Radbruch utilizada inclusive em julgados recentes do STJ,  apregoa que o direito extremamente injusto não pode ser considerado direito, autêntica influência dos valores éticos como limites de justiça.

 Dentro desse cenário jurídico-filosófico, haveria outros limites?

 Atualmente, por uma maior influência do pós-positivismo,  prevalece que o Poder Constituinte Originário, ainda que  ilimitado juridicamente, não é exercido em um vácuo histórico e cultural (Canotilho). Haveria, então, limites metajurídicos, implicações circunstanciais impositivas, resultantes de pretensões de grupos sociais, econômicos e políticos.

Quais seriam então esses limites metajurídicos ao Poder Constituinte Originário?

Jorge Miranda aborda os limites metajurídicos de acordo com a seguinte classificação:


a) Ideológicas = valores arraigados na opinião pública;

b) Institucionais = instituições culturais consolidadas na sociedade (ex.: propriedade privada)

c) substanciais = que se dividem em

-Transcendentes  = transcendem o direito posto (consciência jurídica coletiva, direitos humanos);
-
Imanentes  = configuração histórica do Estado (ex.: república e presidencialismo);
-
Heterônomos = derivam do direito internacional - princípios internacionais (gerais); obrigações assumidas em acordos internacionais (especiais).




LENZA, P. Direito Constitucional Esquematizado 2020 - 24a Edição. [s.l.] Saraiva Educação S.A., 2020.