O Poder Constituinte Originário é verdadeiramente ilimitado?

Talvez não seja tão simples remontar, ou ao menos apontar cronologicamente, a ideia precursora dos processos de criação do Estado e sua respectiva noção de Poder Político. Retroagindo amplamente no tempo, alguns autores cogitam Deus como o primeiro instituidor não só de regras morais, mas também de tempo e espaço submergidos numa perspectiva político-social de regras e princípios a serem seguidos por uma descendência.
Se assim seguirmos o percurso, podemos mencionar a figura do monarca absolutista, mais à frente na linha temporal, como o possuidor da vontade divina traduzida em suas ordens e caprichos, revestidas do poder de criar, recriar e dissolver regras, postulados ou princípios.
Mas quando o Poder de Constituir um Estado e suas regras passaram para as mãos do povo?
O conceito de "Origem do Estado" foi defendido por diversos pensadores, porém Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau destacam-se nesse debate. Suas ideias se baseiam na perspectiva de que a formação de um Estado teve origem no consentimento do povo por meio de um "Contrato Social", visando garantir segurança e direitos individuais.
Seja pela necessidade de se evitar a guerra de todos contra todos, por ser o homem o lobo do próprio homem, ou pela imprescindibilidade de se abrir mão de parte da liberdade individual para a criação de uma sociedade política, ou pelo anseio de ter suas garantias naturais preservadas pela coletividade através da força impositiva de um ente maior, o Estado se forma a partir do exercício de um Poder que o Constitui, sendo o Povo a parte legitimada para as escolhas fundamentais na origem.
Na verdade, o exercício do poder constituinte pelo povo ocorreu, muitas vezes, através de processos revolucionários, como a Revolução Francesa de 1789, onde o povo assumiu um papel fundamental na formulação de novas constituições e na reorganização do Estado. Nesse sentido, não se pode apontar, precisamente, onde e quando o Poder Constituinte de fato passou para as mãos do povo, sendo os marcos revolucionários apenas parâmetros aceitáveis nessa análise.
Esse "Poder de Constituir" é verdadeiramente ilimitado?
Veja, uma análise pura e fria da essência de um Poder Originário, portanto inicial, pode nos levar a interpretações confortáveis, porém rasas. Isso porque a existência de limites propriamente ditos ao Poder Inicial de Constituição de um Estado subordina-se à concepção do pensamento jurídico-filosófico adotada.
Para resumir, evitando-se uma digressão desnecessária, a natureza jurídica do Poder Constituinte Originário é controvertida. Sob as lentes de uma concepção jusnaturalista, trata-se de um poder jurídico (ou de direito) e, por esta razão, subordinado aos princípios do direito natural. Noutro giro, a concepção positivista não admite a existência de qualquer outro direito além daquele posto pelo Estado. Assim, o Poder Constituinte Originário é anterior e se encontra acima de toda e qualquer norma jurídica, devendo ser considerado um poder político/histórico (extraordinário ou de fato).
Qual a diferença, resumidamente, entre Jusnaturalismo, Positivismo e Pós-positivismo?
Sem qualquer pretensão de esgotamento do tema, pode-se dizer que as diferenças básicas entre tais concepções de pensamento circundam a origem da norma, a fonte da autoridade e os limites do poder estatal. Assim, pode-se esquematizar para fins didáticos:
JUSNATURALISMO POSITIVISMO PÓS-POSITIVISMO

Importante frisar que existem diversas vertentes jusnaturalistas, positivistas e pós-positivistas. Parafraseando o Dr. Bruno Torrano: "há positivismos e positivismos". Válido também mencionar que essas abordagens filosóficas podem coexistir e se manifestar de maneiras diferentes em sistemas jurídicos diversos.
As concepções jurídicas de inspiração jusnaturalista e pós-positivista impõem certas limitações ao Poder Constituinte Originário, seja através dos imperativos do direito natural (vida, liberdade etc.), ou até mesmo em respeito à consciência jurídica coletiva e aos valores éticos.
O que se entende por consciência jurídica coletiva no contexto das limitações do Poder Constituinte?
Partindo-se da ideia de que os direitos não são dados pelo Estado, mas conquistados, a consciência coletiva como limite do Poder Inicial se traduz na observância e no respeito aos direitos conquistados por uma sociedade, sobre os quais haja um consenso profundo. Perceba que tal noção limitadora do Estado adquire contornos com o princípio da vedação ao retrocesso (efeito cliquet).
Como os valores éticos se inserem como ferramenta de refreio do Poder Constituinte Originário?
De maneira objetiva, as percepções do que é justo ou injusto podem influenciar na aplicação do direito posto pelo Constituinte Originário. Aliás, a chamada Fórmula de Radbruch, utilizada inclusive em julgados recentes do STJ, apregoa que o direito extremamente injusto não pode ser considerado direito, autêntica influência dos valores éticos como limites de justiça.
Dentro desse cenário jurídico-filosófico, haveria outros limites?
Atualmente, por uma maior influência do pós-positivismo, prevalece que o Poder Constituinte Originário, ainda que ilimitado juridicamente, não é exercido em um vácuo histórico e cultural (Canotilho). Haveria, então, limites metajurídicos, implicações circunstanciais impositivas, resultantes de pretensões de grupos sociais, econômicos e políticos.
Quais seriam então esses limites metajurídicos ao Poder Constituinte Originário?
Jorge Miranda aborda os limites metajurídicos de acordo com a seguinte classificação:
a) Ideológicas = valores arraigados na opinião pública;
b) Institucionais = instituições culturais consolidadas na sociedade (ex.: propriedade privada)
c) substanciais = que se dividem em
-Transcendentes = transcendem o direito posto (consciência jurídica coletiva, direitos humanos);
-Imanentes = configuração histórica do Estado (ex.: república e presidencialismo);
-Heterônomos = derivam do direito internacional - princípios internacionais (gerais); obrigações assumidas em acordos internacionais (especiais).
LENZA, P. Direito Constitucional Esquematizado 2020 - 24a Edição. [s.l.] Saraiva Educação S.A., 2020.