Negócio Jurídico Processual: breves apontamentos

30/05/2024

Introdução

O negócio jurídico processual representa uma inovação no direito processual civil brasileiro, introduzida pelo Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015). Esta figura jurídica proporciona às partes uma maior autonomia na condução do processo, permitindo que estipulem, por meio de acordos, mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades do caso concreto. Este artigo explora a definição, características, limitações e importância do negócio jurídico processual, com base na doutrina de Flávio Tartuce e nas disposições do CPC/2015.

Definição e Características

O negócio jurídico processual é definido como um acordo de vontades entre as partes, visando ajustar o procedimento processual às necessidades específicas do litígio, dentro dos limites estabelecidos pela lei. Flávio Tartuce destaca que essa figura jurídica possibilita uma maior efetividade e celeridade processual, promovendo a valorização da autonomia privada e o princípio da cooperação .

Flexibilidade Procedimental

Uma das principais características do negócio jurídico processual é a flexibilidade procedimental, permitindo que as partes adaptem as regras processuais às peculiaridades do caso. Por exemplo, as partes podem ajustar os prazos processuais, a forma de produção de provas e outras condições procedimentais, desde que não violem normas de ordem pública ou direitos indisponíveis .


Autonomia Privada

O CPC/2015 valoriza a autonomia das partes, permitindo-lhes negociar diversos aspectos processuais. Esta autonomia é fundamental para a personalização do procedimento, conferindo maior controle às partes sobre o andamento do processo .

Princípio da Cooperação

O negócio jurídico processual também reflete o princípio da cooperação, que orienta o CPC/2015. Este princípio estimula a colaboração entre as partes e o juiz, visando uma resolução mais eficiente e justa do litígio .

Disposição Legal

O artigo 190 do CPC/2015 introduz explicitamente o negócio jurídico processual, permitindo que as partes plenamente capazes estipulem mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa.

Art. 190 do CPC/2015

"Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo" .

Requisitos Básicos

Perceba que o próprio art. 190 do CPC prevê alguns requisitos importantes, quais sejam:

  • Deve versar sobre direitos que admitam a autocomposição;
  • As partes devem ser capazes;
  • Deve haver comunhão de vontades.


Limitações

Apesar da ampla liberdade conferida às partes, existem limitações, como se concluir através da análise dos requisitos básicos apontados acima. O negócio jurídico processual não pode versar sobre direitos indisponíveis nem contrariar normas de ordem pública (não admitem autocomposição). Essas restrições garantem a proteção de interesses fundamentais e a preservação da ordem jurídica .

Princípios que Fundamentam as Limitações

A limitação ao NJP baseia-se em dois princípios fundamentais do direito processual civil brasileiro:

  1. Princípio da Ordem Pública: Este princípio estabelece que certas normas processuais têm um caráter imperativo e não podem ser objeto de negociação entre as partes. Essas normas visam proteger o interesse público e garantir a justiça e a equidade no processo.

  2. Princípio da Indisponibilidade dos Direitos: Direitos que são considerados indisponíveis, como direitos fundamentais ou questões que envolvem interesses coletivos ou difusos, não podem ser objeto de acordo entre as partes. Isso assegura que esses direitos não sejam comprometidos por convenções privadas.


Normas de Ordem Pública

As normas de ordem pública são aquelas que, devido à sua importância para o interesse público e a boa administração da justiça, não podem ser afastadas ou alteradas por convenção das partes. Segundo Flávio Tartuce, essas normas são destinadas a proteger a estrutura do processo e a função jurisdicional do Estado. Exemplos incluem regras sobre a competência absoluta dos tribunais, os princípios do contraditório e da ampla defesa, e as garantias processuais mínimas.

Exemplos de Normas de Ordem Pública:

  • Competência Absoluta: As regras que determinam a competência absoluta de um tribunal não podem ser modificadas pelas partes. Isso inclui, por exemplo, a competência em razão da matéria ou da função.

  • Princípio do Contraditório e Ampla Defesa: As convenções que limitarem ou eliminarem o contraditório e a ampla defesa são inadmissíveis, pois comprometem a garantia de um processo justo e equitativo.

  • Prazos Peremptórios: Alguns prazos, considerados essenciais para a ordem do processo, não podem ser alterados pelas partes, como os prazos para a interposição de recursos, via de regra.

Direitos Indisponíveis

Os direitos indisponíveis são aqueles que, por sua natureza, não podem ser renunciados, negociados ou transacionados pelas partes. Segundo a doutrina, esses direitos estão intrinsecamente ligados à dignidade da pessoa humana e à proteção de interesses coletivos e difusos.

Exemplos de Direitos Indisponíveis:

  • Direitos Fundamentais: Direitos como a vida, a liberdade, a integridade física e a dignidade não podem ser objeto de negociação. Qualquer convenção que implique a renúncia ou a limitação desses direitos é nula.

  • Interesses de Incapazes: Direitos que envolvem menores de idade ou pessoas juridicamente incapazes são protegidos de forma rigorosa, impedindo qualquer convenção que possa prejudicá-los.

  • Interesses Coletivos e Difusos: Questões ambientais, direitos do consumidor, e outros interesses que ultrapassam a esfera individual não podem ser transacionados pelas partes.


NORMAS QUE NÃO ADMITEM AUTOCOMPOSIÇÃO VS DIREITOS INDISPONÍVEIS

1. Normas que não admitem autocomposição

Como dito anteriormente, são regras processuais que, por sua natureza, impedem as partes de negociar ou transacionar sobre determinados atos ou etapas do processo. Essas normas estão ligadas à organização e condução do processo e visam garantir a ordem pública e o devido processo legal, sendo, portanto, imperativas. Aqui, o foco está no processo em si, onde o poder de disposição das partes é limitado para preservar a correta aplicação da justiça e a regularidade da relação processual.

2. Direitos indisponíveis

Os direitos indisponíveis, por outro lado, referem-se, como aludido em momento anterior, a situações em que o próprio conteúdo do direito material não pode ser objeto de transação, acordo ou renúncia pelas partes. Esses direitos são de interesse público ou social, e a lei os protege para evitar que o titular do direito prejudique a si próprio ou a terceiros.

O conceito de direito indisponível é mais abrangente e material, ou seja, não está limitado ao processo, mas ao conteúdo do direito em si. Nessas situações, a intervenção do juiz ou do Ministério Público é, em regra, obrigatória, para garantir que o interesse protegido seja respeitado.

Resumo da diferença:

  • Normas que não admitem autocomposição são regras processuais que limitam a capacidade das partes de negociar aspectos do processo judicial (ex.: competência, prazos).

  • Direitos indisponíveis são limitações ao poder das partes de negociar o conteúdo do direito material, por serem de interesse público ou social (ex.: vida, saúde, estado civil).

Controle Judicial

O controle judicial das convenções processuais é uma medida essencial para assegurar que as limitações ao negócio jurídico processual sejam respeitadas. O juiz tem o dever de verificar a legalidade e a adequação das convenções processuais, podendo invalidar aquelas que contrariem as normas de ordem pública ou envolvam direitos indisponíveis.

Papel do Juiz:

  • Validação das Convenções: O juiz deve analisar se a convenção processual respeita as limitações impostas pela lei. Ele deve assegurar que não há violação de normas de ordem pública ou de direitos indisponíveis.

  • Adequação ao Caso Concreto: Além da legalidade, o juiz também verifica a adequação da convenção ao caso concreto, avaliando se o acordo é equilibrado e justo.

  • Intervenção em Casos de Abuso: Se houver indícios de abuso de direito ou de desequilíbrio entre as partes, o juiz pode intervir para ajustar ou invalidar a convenção processual.

O art.190 parágrafo único traz exatamente essa regra:

De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.

A doutrina, conforme exposta por Flávio Tartuce e outros autores renomados, reforça a necessidade dessas limitações para garantir a segurança jurídica e a equidade processual. Tartuce destaca que, embora o NJP seja um avanço significativo, sua aplicação deve ser equilibrada com a proteção dos valores fundamentais do sistema jurídico.

Porém, válida a citação do Enunciado 133 do Fórum Permanente de Processualistas Civis, a saber:

Enunciado 133 : salvo nos casos expressamente previstos em lei, os negócios processuais do art. 190 não dependem de homologação judicial.

Exemplos Práticos de Negócios Jurídicos Processuais

Prazos Processuais

As partes podem acordar prazos diferentes dos previstos no CPC, desde que esses prazos sejam razoáveis e não comprometam a duração razoável do processo .


Provas

É possível convencionar sobre a produção, forma e valoração das provas, permitindo uma gestão mais eficiente e adequada às necessidades do litígio .


Julgamento Antecipado

As partes podem acordar sobre a possibilidade de julgamento antecipado do mérito em determinadas condições, agilizando a resolução do processo .


Importância do Negócio Jurídico Processual

Eficiência Processual

O negócio jurídico processual contribui para a eficiência processual ao reduzir a burocracia e acelerar a resolução dos litígios .

Segurança Jurídica

Proporciona maior previsibilidade quanto ao andamento do processo, aumentando a segurança jurídica para as partes .

Valorização das Partes

Reconhece e valoriza a capacidade das partes de gerirem seus interesses processuais, promovendo uma justiça mais participativa e personalizada .

Conclusão

O negócio jurídico processual, conforme a doutrina de Flávio Tartuce e o CPC/2015, é um mecanismo que reforça a autonomia das partes e contribui para uma justiça mais ágil e eficiente. No entanto, sua aplicação deve respeitar os limites impostos pela indisponibilidade de certos direitos e pelas normas de ordem pública, garantindo a proteção dos interesses fundamentais da sociedade. Este instrumento jurídico representa um avanço significativo, alinhando-se aos princípios de cooperação e efetividade que norteiam o novo sistema processual brasileiro.


Referências

Tartuce, F. (2024). Manual de Direito Processual Civil. São Paulo: Editora XYZ.

Código de Processo Civil, Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015

Didier Jr., F. (2018). Curso de Direito Processual Civil. Salvador: Editora Juspodivm.

Nery Jr., N. (2015). Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais.