Apontamentos sobre o Habeas Corpus 

10/04/2024
> Qual a natureza jurídica do Habeas Corpus?


 Possui natureza jurídica de ação autônoma de impugnação, de natureza constitucional, vocacionada à tutela da liberdade de locomoção, que pode ser ajuizada por qualquer pessoa. (BRASILEIRO, 2024)


> Por que não se pode falar que o Habeas Corpus é um recurso?

Apesar de, por vezes, funcionar como um verdadeiro recurso, o Habeas Corpus não tem essa natureza jurídica. São vários os motivos elencados pela doutrina. Renato Brasileiro elenca como principais:

a) Um recurso pressupõe a existência de um processo. Em sentido oposto, o HC pode ser impetrado independentemente da existência de um processo penal em curso, como no caso de trancamento de inquérito policial;

b) O recurso é um instrumento de impugnação de decisões judiciais; o HC pode ser impetrado contra decisões judiciais e contra atos administrativos ou de particulares;

c) O recurso funciona como instrumento de impugnação de decisões judiciais não definitivas, ao passo que o HC pode ser utilizado, inclusive, após o trânsito em julgado, objetivando a rescisão da coisa julgada, desde que ainda subsista constrangimento ilegal à liberdade de locomoção;

d) Os recursos possuem , como requisito, a tempestividade de seu manejo, sob pena de preclusão temporal. Já o HC, desde que ainda subsista o constrangimento ilegal à liberdade de locomoção, poderá ser impetrado a qualquer momento.

> Qual a origem do Habeas Corpus?

A Doutrina menciona o Habeas Corpus como a primeira garantia fundamental no mundo ocidental. Aponta-se o monarca inglês "João Sem Terra" como figura marcante na cronologia histórica do Habeas Corpus, tendo sido a garantia concedida na Magna Carta, em 1215, formalizada em 1679 pelo "Habeas Corpus Act".

No Brasil, menciona-se a figura de Dom Pedro I e a concessão da garantia fundamental mediante um alvará. No entanto, a terminologia "Habeas Corpus" só foi formalmente cunhada em 1830, no chamado Código Criminal. O Habeas Corpus no Brasil foi reconhecido constitucionalmente a partir de 1891.


> O que foi a "teoria brasileira do Habeas Corpus"?

O Habeas Corpus no Brasil era utilizado para garantir todos os direitos que tinham relação básica pressupostos fundamentais de locomoção. Assim,  a essa utilização ampla do remédio constitucional, que não se limitava à defesa da liberdade física, deu-se o nome de "teoria brasileira do habeas corpus". Essa utilização aberta perdurou até a Reforma Constitucional de 1926.


> Pessoa Jurídica pode ser impetrante de Habeas Corpus?

Sim, ainda que não esteja regularmente constituída, desde que em favor de pessoa física.


> O Habeas Corpus pode ser impetrado em face de particular?


A CF/88, ao versar sobre o Mandado de Segurança, preleciona que o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder deve ser autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do poder público. No entanto, a CF/88 não traz essa limitação expressa ao HC, não fazendo qualquer ressalva quanto ao agente coator.

Assim, é plenamente possível a impetração de HC contra atos de particulares.O exemplo clássico é o de hospital psiquiátrico que privou o paciente de sua liberdade de ir e vir, ilegalmente, a pedido desumano de filhos que abandonam seus pais.


> Como será fixada a competência para apreciação da ação de HC?

A competência no caso de Habeas Corpus será determinada de acordo com a autoridade coatora.


> É possível julgamento de HC pela Turma Recursal de Juizados Especiais? E a súmula 690 do STF?

A Súmula 690 do STF afirmava que competia originariamente ao Supremo Tribunal Federal o julgamento de "habeas corpus" contra decisão de Turma Recursal de Juizados Especiais Criminais.

Porém, o STF passou a entender que, apesar das Turmas Recursais dos Juizados Especiais funcionarem como órgão de segundo grau, na verdade trata-se de órgão formado por juízes do primeiro grau reunidos na sede do Juizado.

Assim, o Supremo atualmente entende que a referida súmula encontra-se superada:

Quanto ao pedido de análise do aduzido cerceamento de defesa em sede de habeas corpus, ressalto que a Súmula 690/STF não mais prevalece a partir do julgamento pelo Pleno do HC 86834/SP, relatado pelo Rel. Ministro Marco Aurélio (DJ em 9.3.2007), no qual foi consolidado o entendimento de que compete ao Tribunal de Justiça ou ao Tribunal Regional Federal, conforme o caso, julgar habeas corpus impetrado contra ato praticado por integrantes de Turmas Recursais de Juizado Especial.
[ARE 676.275 AgR, rel. min. Gilmar Mendes, 2ª T, j. 12-6-2012, DJE 150 de1º-8-2012.]


> É cabível o HC para trancamento do processo de "impeachment"?

O STF já afirmou de maneira acertada que o Habeas Corpus não é instrumento adequado para o trancamento de processo de "impeachment", uma vez que o remédio constitucional em análise não se destina à defesa de direitos alheios à liberdade de locomoção.


> É possível o HC coletivo? Há previsão constitucional ou legal? Qual o "case" paradigma sobre o tema no Brasil? Quais os principais argumentos utilizados pelo STF? Tal "case" seria um resgate histórico da Teoria brasileira do HC?

Inicialmente é importante frisar que não há no ordenamento jurídico brasileiro nenhuma previsão, até o momento, da figura do habeas corpus coletivo. No entanto, há um precedente da segunda turma do STF, no julgamento do HC 143.641 em que , por unanimidade, entenderam os ministros pelo cabimento da impetração coletiva do habeas corpus.

No caso julgado pelo STF, foi analisada a situação de todas as mulheres presas, gestantes, puérperas ou mães de crianças deficientes sob sua guarda e a possibilidade de concessão de ordem de habeas corpus para determinação da substituição da prisão preventiva pela domiciliar.

Dentre os argumentos principais apontados pelo ministro relator, destacam-se os seguintes:

a) As relações de massa exigem tutela adequada coletiva;

b) Resgate da "teoria brasileira do habeas corpus";

c) Possibilidade de extensão da ordem de habeas corpus, prevista no art 580 do Código de Processo Penal, a todos que se encontram na mesma situação processual.

A respeito do precedente do STF sobre o cabimento de habeas corpus coletivo, importante mencionar que um precedente da Suprema Corte da Argentina foi utilizado no voto do relator. O conhecido "caso Verbitsky, que também envolvia a situação de condições insalubres das pessoas presas. No "case" argentino, foi admitida a tutela molecularizada do habeas corpus através de construção jurisprudencial, uma vez que naquele país, assim como no Brasil, não há previsão normativa explícita da modalidade coletiva do habeas corpus.

Válido lembrar, ainda sobre essa tendência à molecularização dos remédios constitucionais, as sábias palavras de Cappelletti:

"Os direitos e deveres não e apresentam mais, como nos Códigos tradicionais, de inspiração individualística-liberal, como direitos e deveres essencialmente individuais, mas metaindividuais e coletivos."

Ainda sobre a possibilidade do HC coletivo e seus requisitos mínimos, ensina Renato Brasileiro em seu Manual de Processo Penal, 2024:

"De todo o modo, para a impetração do HC coletivo há a necessidade de adequada delimitação do grupo favorecido, por meio da especificação de uma questão objetiva de natureza comum, sob pena do HC coletivo se tornar um verdadeiro salvo-conduto genérico, colocando em liberdade pessoas que deveriam permanecer presas".

No entanto, um adendo importante deve ser feito. A jurisprudência é firme no sentido de que a não identificação individual dos pacientes do HC coletivo não constitui justificativa para o seu indeferimento liminar, desde que haja outras formas de identificação daqueles que se encontram na mesma situação de ameaça ou violência a sua liberdade de locomoção no caso específico.

Por fim, deve-se identificar a autoridade coatora pivô da ilegalidade ou abuso de poder, uma vez que tal identificação se faz necessária para a determinação do juízo competente para o julgamento do HC coletivo.

Os requisitos objetivos do habeas corpus coletivo no Brasil foram delineados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em julgamentos históricos e incluem:

  1. Identificação do Grupo ou Coletividade: O habeas corpus coletivo deve ser impetrado em favor de um grupo de pessoas que compartilham uma mesma situação de fato ou jurídica. Não é necessário que todos os integrantes do grupo sejam identificados nominalmente, mas deve haver uma clara definição dos critérios que os caracterizam como parte da coletividade protegida.

  2. Existência de Ilegalidade ou Abuso de Poder: Deve ser demonstrada a existência de ilegalidade ou abuso de poder que afete coletivamente o grupo de pessoas. Isso pode incluir situações de prisão em condições sub-humanas, superlotação carcerária, prisões arbitrárias, entre outras violações de direitos que atingem um grupo determinado de pessoas.

  3. Legitimidade do Impetrante: O habeas corpus coletivo pode ser impetrado por qualquer pessoa que tenha legitimidade ativa para impetrar o habeas corpus individual, como advogados, defensores públicos, membros do Ministério Público ou qualquer cidadão no pleno gozo de seus direitos civis e políticos.

  4. Finalidade Preventiva ou Liberatória: A finalidade do habeas corpus coletivo deve ser a proteção da liberdade de locomoção do grupo de pessoas, podendo ser tanto de natureza preventiva (para evitar a coação ilegal iminente) quanto liberatória (para cessar uma coação ilegal já em curso).


Segundo o STF, é possível a aplicação analógica da lei do Mandado de Injunção (13.300/16) para se conferir a possibilidade de HC coletivo?

A respeito da legitimidade ativa para o habeas corpus coletivo, o relator do caso entendeu que, a princípio, deve ser reservada àqueles listados no art. 12 da lei 13.300/2016 (Lei do Mandado de Injunção). Trata-se de uma aplicação por analogia à referida lei.


> Admite-se a utilização do HC para impugnar um ato normativo em tese?

Não! Isso porque, para a impetração do HC, exige-se que a violência, coação, ilegalidade ou abuso de poder contra a  liberdade de locomoção, ou a ameaça iminente a este direito, seja demonstrada de forma concreta, objetiva. Não é cabível o HC quando essa ameaça de violência ou coação é apenas hipotética.

Importante frisar que, apesar da literalidade Constitucional a respeito de seu manejo para os casos de tutela à liberdade de ir, vir e ficar, a Jurisprudência dos Tribunais Superiores tem apontado para um alargamento do campo de abrangência do HC. Nessa linha, explica Renato Brasileiro em seu Manual de Processo Penal, 2024:

"Há precedentes no sentido do cabimento do HC para apreciar toda e qualquer medida que possa, em tese, acarretar constrangimento à liberdade de locomoção ou, ainda, agravar as restrições a esse direito".


Nesse ponto, é válido listar alguns exemplos dos entendimentos Jurisprudenciais em que os Tribunais Superiores já aplicaram tal alargamento do campo de abrangência do HC:

  1. Anterior aceitação da proposta de SURSIS processual;
  2. Anterior realização de ANPP;
  3. Autorização judicial de quebra de sigilo bancário ou fiscal, se destinada a fazer prova em procedimento penal e desde que não se trate de infração que se comina apenas pena de multa;
  4. Homologação de acordo de colaboração premiada.


> É possível a impetração do HC nos casos de infração penal cominada tão somente com pena de multa, uma vez que o não pagamento da multa autorizará a conversão em pena privativa de liberdade?

Não! Com a alteração do art 51 do Código Penal, dada pela lei n°9268/96, o não pagamento de multa não autoriza mais a conversão em pena privativa de liberdade. Embora a multa tenha natureza de sanção penal, subsiste a impossibilidade de sua conversão em pena privativa de liberdade em caso de inadimplemento, por ser dívida de valor. Assim, não há que se falar em risco à liberdade de locomoção, motivo pelo o qual não será possível o manejo do HC.

Nesse sentido, a súmula n° 693 STF:

Não cabe habeas corpus contra decisão condenatória a pena de multa, ou relativo a processo em curso por infração penal a que a pena pecuniária seja a única cominada.


Aproveitando-se o espírito dos casos em que não será cabível o HC, elenca-se os principais entendimentos sobre o não cabimento desse writ:

  1. Quando já tiver sido cumprida a pena privativa de liberdade (súmula 695 STF);
  2. Exclusão de militar, perda de patente ou de função pública (súmula 694STF);
  3. Perda do cargo como efeito extrapenal específico da sentença condenatória transitada em julgado;
  4. Apreensão de veículos;
  5. Pedido de reabilitação;
  6. Preservação da relação de confidencialidade entre advogado e cliente;
  7. Extração gratuita de cópias de processo criminal;
  8. Aditamento de denúncia para inclusão de outro acusado;
  9. Visita a detento;
  10. Anulação de processo criminal em face de nulidade absoluta que, beneficiando a defesa, resultou em absolvição do acusado;
  11. Perda de direitos políticos;
  12. Impeachment;
  13. Custas processuais ( Súmula 395 STF);
  14. Omissão de relator de extradição. ---> (STF já proferiu entendimento de que se exige, para caracterizar o interesse de agir na via do habeas corpus, que a pretensão posta no writ seja previamente levada à apreciação do relator do feito (extradição) cuja regularidade é questionada. Nesse sentido, confira-se o enunciado da Súmula 692: "Não se conhece de habeas corpus contra omissão de relator de extradição, se fundado em fato ou direito estrangeiro cuja prova não constava dos autos, nem foi ele provocado a respeito". [HC 124.476 AgR, rel. min. Gilmar Mendes, 2ª T, j. 2-12-2014, DJE 248 de 17-12-2014.]);
  15. Impugnação de reparação civil fixada na sentença condenatória;
  16. Suspensão do direito de dirigir veículo automotor;


> Se durante o trâmite de HC o juiz ou tribunal verificar que já cessou a violência ou coação ilegal à liberdade de locomoção, o feito do HC ficará prejudicado?

 Sim! Nesse caso, o juiz ou tribunal julgará o pedido prejudicado, havendo a extinção do processo sem a resolução do mérito em razão do desaparecimento superveniente do interesse de agir.


> O HC impetrado pelo Ministério Público poderá ser conhecido, ainda que o writ vise satisfazer, de maneira reflexa, os interesses da acusação?

 Não! Apesar de não haver dúvidas quanto a legitimidade do MP para a impetração de habeas corpus, essa legitimação não afasta a necessidade de se demonstrar interesse de agir do MP em favor da liberdade de locomoção. Assim, se o HC do MP for de encontro à proteção do ius libertatis do agente, ainda que por via reflexa, o writ não será conhecido.


> É possível a reiteração do HC visando à cessação do mesmo constrangimento ilegal à liberdade de locomoção que motivou o writ anterior?

Sim! Desde que os fundamentos não sejam idênticos. Importante frisar que a decisão que denega HC não faz coisa julgada, de modo que é possível a reiteração de HC, salvo se se tratar de mera reiteração de impetração anteriormente denegada com base nos mesmos argumentos e peculiaridades.

> É cabível a dilação probatória no procedimento do HC?

Não, uma vez que tal vedação tem como objetivo impedir que se instaure uma verdadeira instrução com produção de provas no trâmite desta ação constitucional.

No entanto, no contexto da impetração de HC para trancamento do processo por falta de justa causa, é importante diferenciarmos dilação probatória e análise do suporte probatório necessário para o processo penal:



LENZA, P. Direito Constitucional Esquematizado 2020 - 24a Edição. [s.l.] Saraiva Educação S.A., 2020.

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Direito Processual Penal. 7. ed. São Paulo: Juspodivm, 2024.