Autonomia da Vontade ou Autonomia Privada ?

Introdução
A autonomia da vontade e a autonomia privada são conceitos fundamentais no direito civil, especialmente no que tange às relações contratuais. Este artigo explora a evolução histórica desses conceitos no contexto do direito civil brasileiro, destacando as implicações e repercussões dessa transição no direito contratual. A análise abrange desde a adoção da autonomia da vontade no Código Civil de 1916 até a incorporação da autonomia privada no Código Civil de 2002, evidenciando a crescente ênfase na proteção dos direitos fundamentais e na justiça social.
Histórico da Autonomia da Vontade
Origens Filosóficas e Jurídicas
A autonomia da vontade tem suas raízes nas teorias do direito natural e nos ideais do Iluminismo. Filósofos como John Locke e Jean-Jacques Rousseau defendiam que os indivíduos possuem a capacidade inata de governar suas próprias ações e decisões, um princípio que influenciou profundamente o direito civil. A codificação do direito civil no século XIX, especialmente com o Código Civil Francês de 1804 (Código Napoleônico), institucionalizou a autonomia da vontade, permitindo que as partes contratantes ajustassem livremente seus interesses.
Código Civil de 1916
No Brasil, o Código Civil de 1916, influenciado pelo Código Napoleônico, consagrou a autonomia da vontade como um princípio central. O artigo 112 desse código estabelecia que a interpretação do contrato deveria atender à intenção dos contratantes, refletindo a liberdade das partes para estabelecer os termos e condições de suas obrigações. A autonomia da vontade era vista como uma manifestação da liberdade individual, limitada apenas por normas de ordem pública e bons costumes.
Diferenças Conceituais
Autonomia da Vontade
A autonomia da vontade está intrinsecamente ligada à liberdade de pactuar, inerente da própria concepção da pessoa humana. Esse princípio permite que os indivíduos escolham livremente com quem contratar, os termos do contrato e a forma de execução, respeitando apenas os limites impostos pela lei e pelos bons costumes. É uma expressão direta da capacidade dos indivíduos de autorregulação de suas relações jurídicas.
Autonomia Privada
A autonomia privada, por outro lado, é um conceito mais abrangente que envolve a capacidade dos indivíduos de regular seus interesses privados de forma geral, incluindo, mas não se limitando, às relações contratuais. A autonomia privada abarca também direitos personalíssimos, direitos de família e direitos reais, além de outras esferas da vida civil.
Um aspecto importante da autonomia privada é a sua inter-relação com os direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana. O Código Civil de 2002 incorporou princípios constitucionais, como a função social da propriedade e a proteção dos direitos da personalidade, demonstrando uma evolução no entendimento do papel do direito privado na promoção da justiça social.
Limitações e Críticas
Apesar de sua importância, a autonomia da vontade enfrentou críticas e limitações ao longo do tempo. O princípio, quando aplicado de forma absoluta, podia resultar em desequilíbrios contratuais e injustiças, especialmente em relações desiguais. A jurisprudência começou a reconhecer a necessidade de equilibrar a liberdade contratual com a proteção dos contratantes mais vulneráveis, estabelecendo restrições como a proteção ao consumidor e a incorporação da boa-fé objetiva.
Transição para a Autonomia Privada
Contexto Histórico e Social
A transição da autonomia da vontade para a autonomia privada no direito civil brasileiro está intimamente ligada às transformações sociais, políticas e econômicas do século XX. O surgimento do Estado Democrático de Direito e a valorização dos direitos fundamentais influenciaram profundamente a revisão dos conceitos jurídicos. A necessidade de garantir a justiça social e a proteção dos direitos individuais levou a uma reinterpretação da liberdade contratual, incorporando princípios constitucionais e direitos humanos.
Código Civil de 2002
A promulgação do Código Civil de 2002 marcou uma mudança paradigmática no direito civil brasileiro. O novo código buscou equilibrar a liberdade individual com a necessidade de proteção dos interesses sociais, refletindo uma visão mais moderna e inclusiva do direito. A autonomia privada passou a ser valorizada, englobando não apenas a liberdade contratual, mas também outros aspectos da liberdade individual na esfera privada.
O Código Civil de 2002 incorporou princípios constitucionais, como a dignidade da pessoa humana, a função social do contrato e a proteção dos direitos da personalidade. O artigo 421, por exemplo, estabelece que a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato, destacando a inter-relação entre autonomia privada e justiça social.
Repercussões no Direito Contratual
Liberdade Contratual e Função Social
A principal repercussão da evolução da autonomia da vontade para a autonomia privada no direito contratual é a valorização da função social do contrato. A liberdade contratual permanece um princípio fundamental, mas deve ser exercida de forma a promover a justiça social e a equidade nas relações jurídicas. O artigo 421 do Código Civil de 2002 exemplifica essa mudança, exigindo que a liberdade de contratar seja exercida em conformidade com a função social do contrato.
Boa-Fé Objetiva e Proteção ao Vulnerável
A incorporação da boa-fé objetiva no Código Civil de 2002 representa uma evolução significativa na proteção dos contratantes. A boa-fé objetiva exige que as partes ajam com honestidade, lealdade e transparência, promovendo a confiança e a cooperação nas relações contratuais. Além disso, a proteção ao vulnerável tornou-se um princípio central, refletido na legislação consumerista e na jurisprudência que protege os direitos dos consumidores e outras partes vulneráveis.
Revisão e Resolução de Contratos
A autonomia privada também influenciou a abordagem da revisão e resolução de contratos. O Código Civil de 2002 permite a revisão judicial de contratos em casos de onerosidade excessiva, decorrente de eventos imprevisíveis que alterem significativamente as condições contratuais. Essa possibilidade de revisão visa equilibrar os interesses das partes e evitar injustiças resultantes de desequilíbrios contratuais.
Diferenças entre Liberdade de Contratar e Liberdade Contratual
No direito civil, os conceitos de liberdade de contratar e liberdade contratual são frequentemente discutidos em conjunto, mas possuem nuances distintas. Essas diferenças são especialmente relevantes no contexto da transição da autonomia da vontade para a autonomia privada. Este texto explora essas distinções, esclarecendo como cada conceito se insere na evolução dos princípios jurídicos e suas implicações práticas.
Liberdade de Contratar
A liberdade de contratar é um aspecto específico da autonomia da vontade que se refere à capacidade dos indivíduos de escolher com quem e em que termos estabelecer contratos. Este princípio é fundamentado na ideia de que as partes possuem plena liberdade para negociar e firmar acordos conforme seus interesses, desde que respeitadas as normas de ordem pública e os bons costumes. No direito civil clássico, a liberdade de contratar era vista como uma expressão da liberdade individual, permitindo que as partes ajustassem livremente suas obrigações.
Liberdade Contratual
A liberdade contratual, por outro lado, é um conceito mais amplo e complexo. Além de englobar a liberdade de contratar, inclui a capacidade das partes de definir o conteúdo e os termos dos contratos, bem como de modificar ou extinguir suas relações contratuais conforme suas vontades. A liberdade contratual está intrinsecamente ligada à autonomia privada, que abrange não apenas a liberdade nas relações contratuais, mas também a proteção dos direitos fundamentais e a promoção da justiça social.
Pode-se dizer que a Autonomia Privada nada mais é do que uma concepção que abrange uma dupla liberdade:
LIBERDADE DE CONTRATAR + LIBERDADE CONTRATUAL = AUTONOMIA PRIVADA
Lei de Liberdade Econômica e a Autonomia Privada
A Lei de Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019) foi promulgada com o objetivo de reduzir a intervenção estatal na economia e aumentar a liberdade das empresas e indivíduos para realizar atividades econômicas. No entanto, segundo Flávio Tartuce em seu livro Direito Civil, 2024, essa lei pode ser vista como um retrocesso para a autonomia privada no direito civil brasileiro por diversas razões.
Enfoque na Liberdade de Contratar
A Lei de Liberdade Econômica enfatiza a liberdade de contratar, permitindo que as partes ajustem livremente seus acordos sem grande interferência estatal. Isso se alinha com a noção clássica de autonomia da vontade, onde a ênfase está na liberdade individual para firmar contratos. No entanto, essa abordagem pode negligenciar a função social dos contratos e a proteção dos direitos fundamentais, pilares da autonomia privada.
Risco de Desequilíbrio Contratual
A autonomia privada não se limita à liberdade de contratação; ela também envolve a proteção dos contratantes mais vulneráveis e a promoção da justiça social. A Lei de Liberdade Econômica, ao favorecer uma desregulamentação e uma intervenção mínima do Estado, pode aumentar o risco de desequilíbrios contratuais. Parte mais fraca, como consumidores e pequenos empresários, pode ficar em desvantagem, resultando em possíveis abusos e injustiças que a autonomia privada busca mitigar.
Impacto na Função Social do Contrato
Flávio Tartuce argumenta que a autonomia privada deve considerar a função social do contrato, um princípio essencial no Código Civil de 2002. A Lei de Liberdade Econômica, ao priorizar a liberdade de contratar, pode desconsiderar essa função social, comprometendo a justiça e a equidade nas relações contratuais. A função social do contrato visa garantir que os acordos não só beneficiem as partes envolvidas, mas também atendam aos interesses da sociedade como um todo.
Conclusão
A evolução da teoria da autonomia da vontade para a autonomia privada no direito civil brasileiro reflete uma mudança significativa na abordagem das relações jurídicas. Enquanto a autonomia da vontade enfatizava a liberdade contratual e a autorregulação das partes, a autonomia privada incorpora uma perspectiva mais ampla e inclusiva, alinhada aos princípios constitucionais e à proteção dos direitos fundamentais.
O desenvolvimento histórico desses conceitos e sua incorporação no Código Civil de 2002 destacam a importância de equilibrar a liberdade individual com a justiça social e a proteção dos direitos dos vulneráveis. Compreender essa evolução é crucial para a aplicação adequada dos princípios jurídicos nas relações civis e para a promoção de um ordenamento jurídico mais justo e equitativo.
Autor: Dr.Victor Hugo, Delegado de Polícia Civil do Estado do Paraná.
Edição: Clube do Papiro
Referências
- Gagliano, Pablo Stolze, e Rodolfo Pamplona Filho. Novo Curso de Direito Civil: Parte Geral e Obrigações. 19ª ed. Salvador: Editora JusPODIVM, 2020.
- Gonçalves, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Parte Geral. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2020.
- Venosa, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações e Responsabilidade Civil. 9ª ed. São Paulo: Atlas, 2018.
- Código Civil Brasileiro. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm. Acesso em: 1 jul. 2024.
- Código Civil Brasileiro. Decreto nº 3.725, de 1º de janeiro de 1916. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1916/D3071compilado.htm. Acesso em: 1 jul. 2024.
- Tartuce, Flávio. Direito Civil: Parte Geral e Obrigações. 2024.
- Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019. Institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13874.htm. Acesso em: 3 jul. 2024.