Apontamentos sobre o Incidente de Deslocamento de Competência

1. Introdução
O incidente de deslocamento de competência (IDC) é um mecanismo jurídico estabelecido pela Constituição Federal Brasileira que permite a transferência de processos judiciais da esfera estadual para a federal, visando assegurar a proteção dos direitos humanos e garantir a imparcialidade e a eficiência na administração da justiça. Esta monografia busca analisar o IDC, abordando sua evolução histórica, fundamentos constitucionais e infraconstitucionais, principais doutrinas e jurisprudências relevantes, além de apresentar uma análise crítica sobre sua aplicação e eficácia no ordenamento jurídico brasileiro.
2. Contexto Histórico
O IDC foi introduzido na Constituição Federal de 1988 pela EC 45/04, Emenda esta que adicionou um § 5º no art. 109 da Constituição Federal, refletindo a preocupação do legislador constituinte em fortalecer a proteção dos direitos humanos no Brasil. Este mecanismo teve suas raízes em práticas internacionais que visavam assegurar a justiça em casos onde havia suspeitas de parcialidade ou inadequação na jurisdição local. O contexto histórico de sua inclusão na Constituição de 1988 é marcado pela redemocratização do Brasil e pela necessidade de garantir mecanismos eficientes de proteção aos direitos fundamentais.
3. Fundamento Constitucional e Legislação Infraconstitucional
Fundamento Constitucional
O IDC está previsto no art. 109, § 5º, da Constituição Federal de 1988, que dispõe:
"Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal."
4. Doutrina
Doutrina Nacional
Vários doutrinadores brasileiros discutem o IDC, destacando-se as obras de José Afonso da Silva, Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes.
José Afonso da Silva enfatiza a importância do IDC como instrumento de proteção dos direitos fundamentais, ressaltando sua origem e aplicabilidade no sistema jurídico brasileiro. O autor ainda leciona o seguinte sobre o IDC:
"As causas relativas a direitos humanos, em princípio, são de competência dos juízes estaduais; mas, no caso de grave violação desses direitos, o procurador-geral da República poderá suscitar perante o STJ, em qualquer fase do inquérito ou processo, o incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal, que terá, assim, competência para seu julgamento, nos termos do inciso V-A do art. 109, introduzido pela Emenda Constitucional 45/2004. A transferência de competência, para a Justiça Federal, para o julgamento da violação dos direitos humanos, que vinha sendo reclamada há muito tempo, tendo em vista a responsabilidade do Estado Brasileiro, em face de organismos internacionais de defesa de direitos humanos, foi, assim, acolhida em forma de deslocamento de competência no caso concreto"
( Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 589).
Luís Roberto Barroso analisa o IDC sob a ótica da proteção dos direitos humanos, destacando os desafios e as controvérsias em torno de sua aplicação prática.
Alexandre de Moraes aborda o IDC em suas obras sobre direito constitucional, destacando a função do Ministério Público e a atuação do Superior Tribunal de Justiça na condução deste incidente. Explica ainda o autor que:
"O IDC veio conceder maior efetividade aos tratados internacionais de direitos humanos, especialmente, em face do novo § 3º do art. 5º do texto constitucional"
(Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 8ª ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 1486).
Doutrina Internacional
A doutrina internacional também oferece importantes contribuições para a compreensão do IDC, com destaque para os estudos de David Harris e Manfred Nowak, que discutem a transferência de competência em casos de violação de direitos humanos no contexto de tratados internacionais.
David Harris:
O livro "Cases and Materials on International Law" de David Harris aborda diversos aspectos do direito internacional, incluindo a transferência de competência em casos de graves violações de direitos humanos. No entanto, este livro não trata diretamente do incidente de deslocamento de competência específico do Brasil. No contexto internacional, Harris discute a prática de transferência de competência para garantir a proteção dos direitos humanos e a imparcialidade dos julgamentos, abordando mecanismos similares em outros sistemas jurídicos.
Segue um trecho relevante sobre a transferência de competência no contexto internacional:
"The principle of universal jurisdiction allows states to claim criminal jurisdiction over an accused person regardless of where the alleged crime was committed, and regardless of the accused's nationality, country of residence, or any other relationship with the prosecuting entity. This principle is often invoked in cases of serious human rights violations, where local jurisdictions may be unwilling or unable to prosecute effectively. The aim is to prevent impunity and ensure that perpetrators of grave crimes do not find safe havens."
(HARRIS, David. Cases and Materials on International Law. 8th ed. London: Sweet & Maxwell, 2015, p. 445).
Manfred Nowak:
O livro de Manfred Nowak, "Introduction to the International Human Rights Regime," também não trata diretamente do incidente de deslocamento de competência específico do Brasil, mas aborda a transferência de competência em casos de violações de direitos humanos no contexto dos sistemas internacionais de proteção aos direitos humanos. Manfred Nowak discute a necessidade de jurisdições imparciais e eficazes para garantir a proteção dos direitos humanos.
Segue um trecho relevante onde Nowak aborda a importância de jurisdições imparciais e a transferência de casos para garantir a proteção dos direitos humanos:
"In situations where national judicial systems fail to provide adequate protection of human rights, international mechanisms, including the principle of universal jurisdiction, can play a critical role. The transfer of cases to international or foreign courts is often necessary to ensure that justice is served, particularly in cases involving serious human rights violations. Such mechanisms help to prevent impunity and ensure accountability for perpetrators."
(NOWAK, Manfred. Introduction to the International Human Rights Regime. Leiden: Brill, 2003, p. 289).
5. Jurisprudência
A jurisprudência sobre o IDC é vasta e revela a complexidade e a importância deste mecanismo no sistema judicial brasileiro. Casos emblemáticos incluem o deslocamento de competência em investigações de violações graves de direitos humanos, como o caso da Chacina de Unaí e o caso de assassinatos de defensores de direitos humanos.
Chacina de Unaí: Este caso, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, foi um marco na aplicação do IDC, evidenciando a grave violação de direitos humanos e a necessidade de garantir a imparcialidade do julgamento.
Caso Dorothy Stang: O assassinato da missionária Dorothy Stang também gerou a aplicação do IDC, destacando a importância de proteger defensores dos direitos humanos.
6. O IDC fere o pacto federativo?
Váida a citação de texto do Márcio Cavalcante em seu site "Dizer o Direito" a respeito do tema:
" A mera modificação das regras de competência jurisdicional não enseja ofensa ao pacto federativo ou a qualquer cláusula de autonomia dos órgãos judiciários locais. Isso porque o Poder Judiciário na esfera de desempenho de sua função típica, possui caráter único e nacional.
Ressalte-se que a competência da Justiça Estadual, na feição dada pelo constituinte originário, é residual, ou seja, enquanto os demais órgãos judicantes têm a competência enumerada (expressa), os tribunais de justiça e os juízes de direito são responsáveis pelas causas não afetas aos outros ramos do Poder Judiciário.
Nesse passo, a atribuição à Justiça Federal da tarefa de julgar os processos ligados a graves violações de direitos humanos por meio do incidente de deslocamento simplesmente retira parcela de jurisdição antes englobada residualmente ao corpo de competências da magistratura estadual.
Nesse contexto, a retirada de parcela da competência jurisdicional da magistratura estadual não enseja quebra de cláusula pétrea (art. 60, § 4º, I e IV, CF/88), nem ofensa ao pacto federativo ou a qualquer cláusula de autonomia dos órgãos judiciários locais, em razão do caráter único e nacional do Poder Judiciário".
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. É constitucional o incidente de deslocamento de competência (IDC) para a Justiça Federal, previsto no inciso V-A e no § 5º ao art. 109 da CF. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/48c0b3cf0c62e40eeff5a9b07a63d953>. Acesso em: 20/07/2024
REFERÊNCIAS
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2020.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 34. ed. São Paulo: Atlas, 2021.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 39. ed. São Paulo: Malheiros, 2019.
HARRIS, David. Cases and Materials on International Law. 8. ed. London: Sweet & Maxwell, 2015.
NOWAK, Manfred. Introduction to the International Human Rights Regime. Leiden: Brill, 2003.
Constituição Federal de 1988.
Lei nº 10.446/2002.
Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. É constitucional o incidente de deslocamento de competência (IDC) para a Justiça Federal, previsto no inciso V-A e no § 5º ao art. 109 da CF. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/48c0b3cf0c62e40eeff5a9b07a63d953>. Acesso em: 20/07/2024