Adequação do Processo

Em que consiste o princípio da adequação do processo?
Aludido princípio parte da ideia de que o processo deve se adequar a cada caso, às especificidades da situação litigiosa, das partes e do direito material em análise. Desse modo, é necessária a adequação das técnicas às necessidades do direito material.
De que decorre referido princípio?
Entende-se que o princípio da adequação decorre do princípio da inafastabilidade da jurisdição, insculpido no art. 5º, XXXV, da Constituição da República Federativa do Brasil. Isso porque o direito de acesso à justiça não se limita à possibilidade de postular em juízo, mas deve abarcar o direito de acesso à ordem jurídica justa, o que pressupõe a tempestividade, adequação e efetividade da prestação jurisdicional, conforme leciona Gilson Delgado Miranda:
O acesso à justiça não enquadra apenas a ideia de se garantir a inafastabilidade do controle jurisdicional. Pode-se dizer, em outras palavras, que o acesso à justiça, no ideal da CF e no cumprimento do mister do Poder Judiciário, pressupõe tempestividade, adequação e efetividade. (MIRANDA, Gilson Delgado. A tutela..., 2021, p. 7)
Vislumbra-se, ao demais, que a adequação deflui do princípio do devido processo legal.
Também é possível retirá-lo do direito fundamental a um processo devido: processo devido é processo adequado. Lembre-se que o devido processo legal é uma cláusula geral, de onde se podem retirar outros princípios, tal como o da adequação. (DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil, vol. 1, JusPodivm, p. 146)
Defende-se, ainda, que a adequação decorre do princípio da efetividade, que, por sua vez, é um corolário do devido processo legal.
A compreensão do direito à efetividade do processo depende da adequação da técnica processual aos direitos, ou melhor, da visualização da técnica processual a partir das necessidades do direito material. Se a efetividade requer adequação e a adequação deve trazer efetividade, o certo é que os dois conceitos podem ser decompostos para melhor explicar a necessidade de adequação da técnica às diferentes situações de direito substancial. (MARINONI, Luiz Guilherme. O direito à tutela jurisdicional efetiva..., RT, 2003)
Como ele se harmoniza com o modelo de organização do processo adotado pelo Código de Processo Civil (CPC) de 2015?
Classicamente, enxerga-se dois modelos de organização do processo: o modelo inquisitorial, com predomínio do princípio inquisitivo; e o modelo adversarial, com prevalência do princípio dispositivo.
Mais recentemente, no entanto, a doutrina vem defendendo a existência de um novo arquétipo processual: o processo cooperativo. Nesse modelo, cuja adoção se extrai do art. 6º do CPC, supera-se a clássica dicotomia. Não mais se fala em predomínio do princípio inquisitivo ou dispositivo no processo como um todo, pelo que haverá situações em que um princípio prevalecerá e outras situações em que o outro incidirá com maior força.
Os princípios do devido processo legal, da boa-fé processual, do contraditório e do respeito ao autorregramento da vontade no processo, juntos, servem de base para o surgimento de outro princípio do processo: o princípio da cooperação. O princípio da cooperação define o modo como o processo civil deve estruturar-se no direito brasileiro.
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Esse modelo caracteriza-se pelo redimensionamento do princípio do contraditório, com a inclusão do órgão jurisdicional no rol dos sujeitos do diálogo processual, e não mais como um mero espectador do duelo das partes . O contraditório é valorizado como instrumento indispensável ao aprimoramento da decisão judicial, e não apenas como uma regra formal que deve ser observada para que a decisão seja válida. Não por acaso, o art. 10 do CPC, já examinado, proíbe a decisão surpresa, impondo ao órgão julgador o dever de consulta.
A condução do processo deixa de ser determinada exclusivamente pela vontade das partes (marca do processo liberal dispositivo). Também não se pode afirmar que há uma condução inquisitorial do processo pelo órgão jurisdicional, em posição assimétrica em relação às partes. Busca-se uma condução cooperativa do processo, sem destaques para qualquer dos sujeitos processuais. Não por acaso, o CPC consagra o princípio do respeito ao autorregramento da vontade, examinado mais à frente, que claramente reequilibra as posições das partes e do juiz na divisão de tarefas processuais. (DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil, vol. 1, JusPodivm, p. 156-7)
O princípio da adequação se harmoniza com o modelo cooperativo de processo ao permitir que tanto o juiz quanto as partes possam atuar para adequar o procedimento à necessidade do direito material em litígio.
Cabe destacar que a adequação convencional, por meio dos negócios jurídicos processuais, são, para Freddie Didier Jr., a mais perfeita expressão do modelo cooperativo de processo.
- Qual paralelo pode ser traçado entre a evolução das teorias da ação e o princípio da adequação?
Inicialmente, o direito de ação era visto como o próprio direito material em movimento. Em essência, essa era a ideia da teoria imanentista ou civilista de ação. Assim, após a agressão ou ameaça do direito material poderia o titular se valer da ação, inexistindo direito de ação sem o direito material.
Posteriormente, surgiu a teoria concreta da ação, para a qual haveria distinção entre o direito de ação e o direito material, mas inexistiria independência entre ambos: o direito de ação só surgiria se o direito material existir. É um direito do indivíduo contra o Estado, com o objetivo de ter para si uma sentença favorável, e ao mesmo tempo um direito contra o adversário.
Em contraponto a essas teorias, surgiu a teoria abstrata de ação, segundo a qual o direito de ação e o direito material não se confundem. O direito de ação é independente do direito material e consiste no direito abstrato de obter um pronunciamento do Estado por meio de uma decisão judicial. Vê-se o direito de ação como amplo, abstrato e incondicionado (não havendo nenhum requisito).
Por sua vez, a teoria eclética, que para a maior parte da doutrina foi adotada pelo CPC de 2015, estabelece uma espécie de teoria abstrata com temperamentos. Em sua perspectiva, o direito de ação não se confunde com o direito material, mas não é incondicional e genérico: só existe quando o autor tem direito a um julgamento de mérito, seja ele favorável ou desfavorável. Embora não dependa do direito material, exige o preenchimento de certos requisitos, que são as condições da ação.
Para o Superior Tribunal de Justiça, porém, adotou-se a teoria da asserção, pela qual as condições da ação devem ser verificadas pelo juiz de acordo com os elementos fornecidos pelo próprio autor, em sua petição inicial. Se houver necessidade de cognição mais aprofundada, passarão a ser entendidas como matéria de mérito.
O princípio da adequação segue o mesmo sentido de reaproximação entre o direito processual e o direito material, ao permitir que este venha a influenciar naquele, que não é visto como um fim em si mesmo, mas como instrumento para a adequada, efetiva e justa consecução do direito.
Quais são os critérios de adequação?
A adequação do processo apresenta-se, segundo Galena Lacerda, sob três aspectos: subjetivo, objetivo e teleológico, que não se entrelaçam. (DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil, vol. 1, JusPodivm, p. 147)
A adequação subjetiva diz respeito à adequação do processo aos sujeitos processuais. Como exemplo, tem-se a intervenção obrigatória do MP, regras diferenciadas para competência, prazos especiais, etc.
A adequação teleológica consiste em adaptar o processo aos objetivos que ele visa alcançar, a exemplo dos regramentos distintos entre o processo de conhecimento e o processo de execução.
Os critérios objetivos utilizados pelo legislador para adequar a tutela jurisdicional são basicamente três: natureza do direito litigioso, como se apresenta o direito material no processo e a situação processual de urgência.
São exemplos do primeiro critério de adequação objetiva alguns procedimentos especiais, criados para a tutela de determinadas situações litigiosas: as ações possessórias, a ação de alimentos e a busca e apreensão em alienação fiduciária.
A indisponibilidade do direito é fator levado em consideração para a diferenciação procedimental. Galena Lacerda, ao analisar esta adequação objetiva, assim se manifesta: "Interessante é observar corno a diferença de grau entre a disponibilidade e a indisponibilidade do objeto, isto é, do bem jurídico material, influi necessariamente nas regras de processo. As repercussões dessa gradação nos vários tipos de processos explicam as soluções várias e específicas para problemas corno o impulso processual, a extensão dos poderes do juiz e dos direitos e deveres processuais das partes, os efeitos da aquiescência, a natureza da preclusão e da coisa julgada, a distinção quanto aos vícios do ato processual, a disponibilidade das provas, a substituição e a sucessão no processo, e tanto outros".
A tutela diferenciada da evidência é aquela em que regras processuais são adaptadas, tendo em vista a alta probabilidade de o direito afirmado existir. É preciso tutelar o direito evidente de modo distinto. São exemplos de adequações objetivas que levam em consideração esse critério: a criação dos procedimentos especiais do mandado de segurança (Lei n. 12.016/2009) e da ação rnonitória (arts. 700 e segs., CPC) e a possibilidade de tutela provisória da evidência (art. 311, CPC; art. 562, CPC; art. 59, § 1º, Lei n. 8.245/1991).
Ainda é possível adequar objetivamente o processo às situações de urgência (perigo), corno se faz ao autorizar-se a tutela provisória de urgência (arts. 300-310, CPC). (DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil, vol. 1, JusPodivm, p. 147-8)
- Quais são as espécies de adequação?
A adequação pode ser legal, judicial ou negocial. A adequação legal pode se dar pela previsão de procedimentos especiais, pelas qualidades subjetivas dos sujeitos processuais (réu revel, incapazes em juízo, fazenda pública, hipossuficiente, etc). Poderá, ainda, ocorrer a adequação pelo trânsito de técnicas.
> O que é o trânsito de técnicas?
Quando o CPC previu, no art. 327, § 1º, III, e § 2º, a utilização do procedimento comum, com adequações dos procedimentos especiais, no caso de cumulação de pedidos, a doutrina observou aí uma cláusula geral de adaptabilidade do procedimento comum.
Assim, p.ex., parece ser possível a cumulação de ação para o cumprimento de dever de fazer com ação de consignação em pagamento, hipótese em que, ainda se que observe o procedimento comum, será possível o deferimento depósito nos termos do art. 542, caput, I do Código, que é técnica processual diferenciada prevista no procedimento especial de consignação em pagamento. (MEDINA, José Miguel Garcia. CPC Comentado, 2022)
Sobre a importância da adequação legal, vale destacar:
A linha de frente da aplicação do princípio da adequação sempre foi a atuação do legislador, servindo de guia para orientar a produção dos procedimentos em abstrato, por meio de regras gerais de regência da atividade processual. (MILMAN, Isabel. Formalismo Processual..., RDP, v. 298, 2020)
As adequações judicial e negocial, ao contrário da legal, ocorrem em concreto. A adequação judicial consiste nas adequações feitas em concreto pelo magistrado. Tal possibilidade é prevista em algumas normas, como no art. 139, VI, (prazo), o art. 373, § 1º (ônus da prova) e o art. 723, parágrafo único (conveniência e oportunidade na jurisdição voluntária). Mas também pode ocorrer, por exemplo, se o juiz corrigir determinado procedimento com o fim de garantir o contraditório, quando não previsto.
A adequação negocial ocorre por meio dos negócios jurídicos processuais ou convenções processuais. Podem ser típicos, quando há expressa disciplina legal (como foro de eleição, distribuição diversa do ônus da prova, escolha de perito, calendarização do processo, etc), ou atípicos, ante a cláusula geral de negociação prevista no art. 190.
Entende-se que o Ministério Público também pode celebrar negócio jurídico processual (ex.: cláusula processual em TAC), inclusive como fiscal da ordem jurídica (art. 15 da Resolução 115 do CNMP). Caso sua intervenção seja imperiosa, deve participar também da convenção processual, sob pena de nulidade (enunciado 154 do FPPC).
Deve-se atentar aos requisitos para a celebração desse negócio jurídico, quais sejam, direitos que admitam autocomposição ("A indisponibilidade do direito material não impede, por si só, a celebração de negócio jurídico processual", tanto que se admite negócios processuais pela fazenda pública), capacidade das partes (há controvérsia se a capacidade material ou processual). Não há necessidade de homologação judicial, mas o juiz pode exercer o controle da convenção (art. 190, parágrafo único, do CPC).