A Teoria da Base do Negócio Jurídico

31/08/2024

Introdução

A teoria da base objetiva do negócio jurídico destaca-se como um dos conceitos mais sofisticados e relevantes na moderna hermenêutica contratual. Desenvolvida no direito civil alemão, essa teoria surgiu como uma resposta à rigidez da interpretação contratual tradicional, inadequada para lidar com as complexidades do mundo contemporâneo, especialmente em cenários onde mudanças substanciais nas circunstâncias abalavam os fundamentos dos negócios jurídicos. Este estudo visa explorar profundamente essa teoria, abordando sua origem, evolução e aplicabilidade, particularmente no contexto do direito brasileiro, com ênfase no Código de Defesa do Consumidor (CDC).


1. Origens e Desenvolvimento Histórico

A teoria da base objetiva do negócio jurídico, ou "Geschäftsgrundlage", como é conhecida no direito alemão, surgiu no início do século XX, impulsionada pela necessidade de flexibilizar a aplicação dos contratos em situações extraordinárias e imprevistas. Com contribuições de juristas como Otto von Gierke e Friedrich Carl von Savigny, a teoria foi concebida para defender que os contratos não devem ser interpretados rigidamente, ignorando as condições subjacentes à sua celebração.

O Código Civil Alemão (BGB), especialmente após a reforma de 2002, incorporou explicitamente essa teoria, estabelecendo diretrizes para a revisão judicial dos contratos quando eventos supervenientes alteram as condições que serviram de base ao negócio jurídico. Essa evolução no direito alemão influenciou profundamente outros sistemas jurídicos, incluindo o brasileiro.


2. Conceito e Fundamentos

A teoria da base objetiva do negócio jurídico sustenta que todo contrato é fundado sobre certas condições que, mesmo não explicitamente mencionadas, são consideradas essenciais para a sua existência. Essas condições, quando abaladas por eventos extraordinários e imprevistos, tornam-se centrais para a revisão ou até a extinção do contrato.

Base Objetiva do Negócio Jurídico:

  • A base objetiva refere-se às condições essenciais que as partes tomam como garantidas ao firmarem o contrato. Exemplos incluem a estabilidade econômica, a previsibilidade do mercado e a ausência de eventos catastróficos, cuja alteração substancial justificaria uma nova avaliação do contrato.

Mudança nas Circunstâncias:

  • Quando tais circunstâncias são significativamente alteradas, a teoria da base objetiva permite a revisão ou rescisão do contrato, evitando que uma das partes seja excessivamente onerada ou que o contrato perca sua finalidade original.

Finalidade da Teoria:

  • A teoria visa assegurar a justiça contratual, ajustando as relações entre as partes para preservar a boa-fé objetiva, princípio fundamental que orienta a interpretação e execução dos contratos.


3. Aplicação Prática

A aplicação prática da teoria da base objetiva do negócio jurídico é crucial em contextos onde a manutenção estrita dos termos contratuais poderia resultar em injustiça. A teoria é particularmente relevante em contratos de longa duração ou de execução continuada, nos quais as circunstâncias podem mudar substancialmente após a celebração do contrato.

3.1. Revisão Judicial do Contrato:

  • Crises econômicas, desastres naturais e outras mudanças drásticas que alteram os custos de execução de um contrato podem justificar a revisão judicial, protegendo a parte mais vulnerável de um ônus excessivo.

3.2. Resolução do Contrato:

  • Quando a alteração das circunstâncias torna impossível ou excessivamente onerosa a execução do contrato, a teoria permite a sua resolução, garantindo que as partes não sejam obrigadas a cumprir obrigações desproporcionais.

3.3. Ajuste Proporcional:

  • Em cenários menos extremos, a teoria pode justificar ajustes nas obrigações contratuais, como a extensão de prazos ou a readequação de valores, preservando o equilíbrio inicialmente pretendido.


4. Comparação com Outras Teorias

A teoria da base objetiva do negócio jurídico distingue-se de outras teorias contratuais, como a teoria da imprevisão e a teoria da onerosidade excessiva, por sua amplitude e flexibilidade.

Teoria da Imprevisão:

  • Enquanto a teoria da imprevisão trata de eventos imprevisíveis que tornam a execução do contrato excessivamente onerosa, a teoria da base objetiva aplica-se mesmo quando os eventos são previsíveis, desde que suas consequências sejam drásticas a ponto de afetar a base do contrato.

Teoria da Onerosidade Excessiva:

  • A teoria da onerosidade excessiva se concentra no desequilíbrio econômico entre as partes, enquanto a teoria da base objetiva abrange tanto o desequilíbrio econômico quanto a alteração das condições que justificaram a celebração do contrato.


5. A Incorporação da Teoria da Base Objetiva no Código de Defesa do Consumidor

No contexto brasileiro, a teoria da base objetiva foi implicitamente incorporada pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC), que prevê, em seu art. 6º, inciso V, a possibilidade de revisão de cláusulas contratuais que imponham prestações desproporcionais em decorrência de alterações nas condições inicialmente pactuadas.

Cláudia Lima Marques (2017) aponta que o CDC absorveu a lógica dessa teoria ao admitir a revisão contratual mesmo na ausência de imprevisibilidade, desde que a alteração das circunstâncias seja substancial e afete o equilíbrio contratual. O doutrinador Bruno Miragem (2020) corrobora essa visão, argumentando que o CDC vai além da teoria da imprevisão, ao reconhecer que a vulnerabilidade do consumidor justifica a revisão contratual em casos de desequilíbrio significativo.

Além disso, Flávio Tartuce (2024) ressalta que, embora a teoria da base objetiva se aproxime da teoria da equidade contratual, elas não são sinônimas. Enquanto a teoria da base objetiva se preocupa principalmente com as mudanças externas que afetam as condições iniciais do contrato, a teoria da equidade se foca na justiça interna do contrato, avaliando a proporcionalidade das obrigações pactuadas. Flávio Tartuce destaca que, embora ambas as teorias possam se complementar, elas servem a propósitos distintos no âmbito do direito contratual, sendo a base objetiva uma ferramenta para reequilibrar contratos afetados por mudanças contextuais, e a equidade, uma ferramenta para ajustar contratos desde sua formação.

5.1. Jurisprudência do STF e STJ

A aplicação da teoria da base objetiva do negócio jurídico no âmbito das relações de consumo foi recentemente confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em diversos julgados, particularmente em casos afetados pela pandemia de COVID-19. No REsp 1.321.614-SP, o STJ reconheceu a alteração drástica das circunstâncias e aplicou a teoria para permitir a revisão de um contrato de locação comercial. A decisão reafirmou a importância de preservar o equilíbrio contratual e destacou que o CDC ampara a modificação das cláusulas contratuais quando a base objetiva do negócio é alterada por eventos supervenientes.

O Supremo Tribunal Federal (STF), por sua vez, tem abordado a função social do contrato, um princípio subjacente à teoria da base objetiva. Em decisões como a ADI 2236-DF, o STF reafirmou que a preservação do equilíbrio contratual é essencial para a manutenção da justiça nas relações contratuais, especialmente quando o desequilíbrio é causado por fatores externos e imprevistos.


Conclusão

A teoria da base objetiva do negócio jurídico constitui um marco na evolução do direito contratual, ao proporcionar um mecanismo justo e adaptável para lidar com as mudanças nas circunstâncias que afetam a base dos contratos. No Brasil, sua incorporação pelo Código de Defesa do Consumidor demonstra o compromisso em proteger o equilíbrio e a justiça nas relações de consumo, refletindo a importância da flexibilidade jurídica em um mundo em constante transformação.


Referências

  • MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 6. ed. São Paulo: RT, 2017.
  • MIRAGEM, Bruno. Manual de Direito do Consumidor. 6. ed. São Paulo: RT, 2020.
  • TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 12. ed. São Paulo: Método, 2024.
  • Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.321.614-SP. Julgado em 2024. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 30 ago. 2024.
  • Superior Tribunal de Justiça. Informativo de Jurisprudência n. 783. Julgado em 2023. Disponível em: processo.stj.jus.br. Acesso em: 30 ago. 2024.